A crença de que o padrão de vida pessoal é um resultado do esforço,
da dedicação e do talento é bastante difundida e bem aceita. No
microcosmo de cada segmento social, é fácil apontar aqueles que
atingiram bons resultados a partir da dedicação e os que não trilharam
esse caminho. Esse julgamento de valor é, entretanto, enganoso. Enganoso
porque tal análise parte do pressuposto de que todos estão em igualdade
de concorrência, que nascemos e crescemos em condições análogas de
capital (material, político, cultural, etc). Enganoso porque dedicação
por si só não resulta fatalmente em ganho material ou simbólico,
tampouco existe a correlação entre o binômio dedicação-ascensão.
A renda e o padrão de vida estão mais para resultados sociais do que
individuais. A comparação entre países elucida essa questão. Em Londres,
uma diarista cobra, aproximadamente, £ 12,00 por hora (R$ 43,80) por os
seus serviços. Caso trabalhe 40 horas por semana, ao final do mês,
receberá R$ 7.000,00. É autoevidente que uma faxina em Londres não
requer dez vezes mais talento, mérito, esforço ou conhecimento do que no
Brasil. O que explica então a diferença da remuneração do trabalho de
limpeza entre esses países? Muitos fatores explicam. Entre eles podemos
citar o reconhecimento, nesse caso específico, do trabalho de cunho
doméstico, historicamente aviltado e relegado ao âmbito privado, sob
responsabilidade feminina. Dessa forma, a melhor remuneração do trabalho
doméstico no país citado se dá antes pelo reconhecimento da
trabalhadora/trabalhador doméstica/o (que perpassa questões de gênero em
seu cerne) do que pelo poderio meramente econômico do país. Há uma
parcela de explicação nos valores comuns aceitos, os quais, em grande
medida, estabelecem os salários.
Por outro lado, o PIB per capita do Reino Unido foi, em 2013, de US$
39.567,00. No Brasil, US$ 11.347,00. Ou seja, o nível de
desenvolvimento de lá é superior. As diferenças salariais são bastante
explicadas pelo padrão médio. Nesse sentido, a remuneração e o acesso a
bens é fortemente social e não apenas individual. A pobreza na Somália
não é um resultado da preguiça, da vagabundagem, da corrupção e da
incapacidade dos políticos, e sim um reflexo do PIB per capita de US$
128,00 anuais.
O mesmo raciocínio é válido para o padrão de serviços públicos
(saúde, educação, logística...). Eles emitem o resultado social e não
dizem acerca da qualidade dos políticos e dos gestores públicos. Com a
renda per capita atual, cada brasileiro contribui em média com R$ 787,00
em impostos por mês, a despeito da carga tributária ser de 35%. Na
Noruega, com renda per capita de US$ 100.818,00 e carga tributária de
44%, cada cidadão contribui, em média, com R$ 8.800,00 mensais ao
Estado. Ou seja, 11 vezes mais do que o brasileiro. Assim, é
absolutamente lógico e racional que seus serviços públicos sejam onze
vezes melhor do que os nossos. É um resultado do desenvolvimento social
de lá.
A meritocracia é bem aceita como parâmetro de sucesso. A percepção
do mérito, porém, comumente, não considera a riqueza familiar, as
condições sociais iniciais, os preconceitos e erros históricos que as
sociedades carregam. O trabalho de Thomas Piketty, no livro o Capital no
Século XXI, mostra, a partir de uma pesquisa com dados desde 1700, que a
sociedade “meritocrática” não permite que figure o topo quem não é
herdeiro de uma fortuna. No mundo contemporâneo, o conhecimento e a
titulação consentem ao indivíduo um rendimento 10 vezes superior à
média. E aos perdedores, a dominação é justificada a partir da justiça,
da virtude, do mérito e da baixa produtividade a quem está na base da
pirâmide social. Piketty mostra que os filhos de ricos, entretanto,
possuem um padrão de vida superior aos “mais talentosos” (?)
trabalhadores. Se há algum mérito que justifique a renda desses
senhores, os filhos dos ricos, é o mérito de serem herdeiros. Eles
herdam bens e empresas sem esforço algum. Possuem acesso aos melhores
centros de educação e, geralmente, possuem mais tempo para desenvolver
capacidades. Isso não é meritocrático.
O mérito de nascer em uma família rica, em que o patrimônio e o
rendimento mensal, frutos desses, perpetuam ainda mais a concentração,
desmistifica o “esforço” de conquistar diplomas e administrar grandes
empresas. Após comparar várias fontes de dados, os estudos de Piketty
conseguiram estimar uma possível renda anual dos pais dos estudantes de
Harvard. Esta conta gira em torno de US$ 450.000,00. Essas constatações
colocam dúvida sobre a seleção da universidade com base única no mérito.
Relegar apenas a si a responsabilidade de sua remuneração e
estigmatizar o fracasso como ausência de mérito é desconhecimento das
regras que pautam as dinâmicas sociais contemporâneas.
Por Róber Iturriet Avila, pesquisador, doutor em economia e
professor da Unisinos. Luís Felipe Gomes Larratea e Antônio Tedesco
Giulian
http://jornalggn.com.br/noticia/a-relacao-entre-merito-renda-e-realidade-social
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