Há uma
contradição permanente na classe média. Quando debate o metrô em
Higienópolis, quer ser diferenciada, mas, quando debate o IPTU, quer ser
igual, não aceitando que a alíquota de Guaianases seja diferente da sua
Por Glauber Piva
Há muitas maneiras de
se pensar a vida brasileira. Todas elas enraizadas em visões de mundo
historicamente identificáveis e, portanto, passíveis de algum nível de
entendimento. Uma dessas maneiras, talvez a hegemônica no Brasil das
cidades grandes, é o que chamo de visão de classe média: um tipo de
visão de mundo bastante alicerçado em valores como intenso consumo
(tanto de bens quanto de serviços), segmentação das cidades em ilhas de
convívio (como os condomínios, por exemplo) e a reiterada negação do
Estado e do debate público.
Essa sorrateira e
envolvente visão de classe média pensa a vida política brasileira como
se estivesse num shopping center: olha o jogo democrático a partir da
suposta assepsia de seu mundo privado – embora ache que está no ambiente
público – concebido para ser uma solução dos problemas sociais onde
reinam desajustes, desigualdades, contradições, imprevistos. E é assim
que ela debate o aumento do IPTU em São Paulo, as denúncias de
corrupção, a cocaína no helicóptero do deputado de Minas Gerais ou as
propostas de financiamento público de campanhas eleitorais.
Essa lógica de classe
média considera a política como suja e como o ‘mundo de fora’ em
contraposição ao “shopping center” no qual vive, que, para ela, é o
‘mundo de dentro’. O ‘mundo de fora’ seria a realidade-real, o espaço
urbano com seus problemas de transporte, de saneamento, coleta de lixo,
filas na saúde, educadores cansados e maltratados, uma gigantesca
parcela da população em habitações informais e todo o caráter público
que o compõe. É como se esse mundo contivesse outra realidade construída
artificialmente (uma realidade paralela que a classe média julga ser a
verdadeira, única e correta): o ‘mundo de dentro’ (que, como nos
shoppings, é limpo e isento dos fatores que agem no ‘mundo de fora’ –
chuva, sol, frio, neve, mendigos, pedintes, trânsito, poluição etc.)1.
O que ela não vê, nem aceita, é que a assepsia na qual julga viver foi
concebida à custa de escravidão, desastres ambientais, desigualdade,
privatização do debate público e negação de direitos. No seu mundo
asséptico, empregados domésticos não devem ter direito a cuidar de seus
próprios filhos, nem viajar de avião, nem entrar nos seus shoppings.
É essa visão asséptica
do mundo que entende que a política sob a lógica dos interesses
empresariais é limpa. Sujo é o Programa Bolsa Família que em vez de
cesta básica, garante um mínimo de dinheiro para que as pessoas possam
escolher a comida que querem comer, ou o metrô no bairro de
Higienópolis, terra prometida à gente diferenciada, ou, ainda, um modelo
de IPTU que reconhece que Itaim Paulista e Itaim Bibi não são iguais
perante a prefeitura, assim como são diferentes perante o mercado. Para
os que negam o debate público, tudo isso é sujo, tudo isso é coisa de
quem precisa do Estado: ele, por si só, também uma coisa suja e de
sujos.
O debate em torno do
IPTU em São Paulo é um bom exemplo disso. Como Fernando Haddad propôs
maior isenção a aposentados e, por várias razões que se entrecruzam, o
aumento da quantidade de imóveis isentos e a divisão da cidade em três
zonas com diferentes índices de cálculo para cada uma delas. Pela regra
proposta, a régua que mede uma casa na periferia não será mais a mesma
da construção em bairros mais centrais, mais valorizados. Já que o m2 de
área construída em bairros nobres é mais caro, será mais caro também o
imposto cobrado para os imóveis dessas áreas.
A questão aqui não é
apenas se alguns pagarão mais que outros, mas a maneira como é percebia a
atuação dos governos e como se estabelecem diferenciações hierárquicas
entre ricos e pobres, entre os de dentro e os de fora do grande
shopping. Sendo assim, quando falamos “classe média”, não estamos nos
referindo àquela faixa de renda acima de x reais. Esse x só
serve para identificar a faixa de renda e, portanto, a capacidade de
consumo das famílias. O que define a classe média é sua posição em
relação ao núcleo econômico da sociedade ou em relação ao núcleo do
poder político: a classe média não detém o poder do Estado nem o poder
social da classe trabalhadora organizada. Tampouco é detentora do
capital e dos meios sociais de produção, assim como não é a força de
trabalho que produz capital.
Sem identidade própria,
a classe média se fragmenta e se alimenta de um individualismo
competitivo intenso. Instável, alimenta permanentemente as ideias de
ordem e segurança, povoando seu imaginário com o sonho de se tornar
parte da classe dominante, e o pesadelo de se tornar proletária. Como
aponta Chauí, para que o sonho se realize e o pesadelo não se
concretize, é preciso ordem e segurança. Isso torna a classe média
ideologicamente conservadora e reacionária e seu papel social e político
torna-se o de “assegurar a hegemonia ideológica da classe dominante”,
fazendo com que essa ideologia, por intermédio da escola, da religião,
dos meios de comunicação, se naturalize e se espalhe pelo todo da
sociedade. É sob esta perspectiva que se pode dizer que a classe média
encara o ambiente público como um shopping center, um lugar de ordem e
segurança, defendido por uma polícia privada e dotado de regras próprias
daqueles que colocam o consumo e o indivíduo no centro das
preocupações.
Há rachaduras profundas
na sociedade brasileira que a classe média prefere ignorar, esperando
que o mundo tenha a mesma cara asséptica que eles preferem ver nos
centros de compras das grandes cidades. Como vive entre o pesadelo e o
sonho, há uma contradição permanente na classe média. Quando debate o
metrô em Higienópolis, não aceita que os pobres frequentadores do
Estádio do Pacaembu utilizem suas ruas: quer ser diferenciada. Mas,
quando debate o IPTU, quer ser igual, não aceitando que a alíquota de
Guaianases seja diferente da sua.
Como, do ponto de vista
simbólico, a classe média precisa substituir, ao mesmo tempo, sua falta
de poder econômico e de poder político, ela se dedica à busca dos
signos de prestígio, como diplomas e consumo de serviços e objetos
indicadores de autoridade, abundância e ascensão social. Assim, o
comportamento e o discurso da classe média brasileira são obstáculos que
se erguem contra a democracia e alimentam a hegemonia do autoritarismo
social que conhecemos.
Essa mistura de medo e
ódio, silêncio e torpor, comporta seus preconceitos e alimenta suas
opiniões sobre a política, os políticos, o Estado e o dissenso
característico do dinamismo da vida social. Quando os meios de
comunicação tradicionais proclamam insistentemente que somos
democráticos, ‘cordiais’, fraternos e docemente miscigenados, estão
apenas trabalhando para pasteurizar as tensões da luta de classes e
carimbar “vândalos” na testa dos divergentes: maus são os outros (!),
aqueles que não frequentam as festas de peão do interior paulista, os
sambas requintados da zona sul carioca e nem aceitam os ideais de ordem,
segurança e individualismo das democracias endinheiradas pelas compras
de Natal.
Glauber Piva, sociólogo, é ex-diretor da Ancine – Agência Nacional do Cinema
http://revistaforum.com.br/blog/2013/12/o-iptu-vai-ao-shopping-de-metro/
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