Perpetuada através de pensadores tão dispares quanto Campanella,
Saint-Simon e Fourier, a corrente utópica de pensamento, surgida em 1516
com a seminal obra “A Utopia”, de Thomas Morus, encontraria em meados
do século XX um curioso contraponto em obras como “Admirável Mundo
Novo”, de Aldous Huxley, e principalmente em “1984”, do escritor inglês
George Orwell.
Enquanto a idéia utopista clássica idealiza, em sua essência, uma
sociedade regida por valores que enaltecem a liberdade, a igualdade e a
justiça, em seu romance “1984”, Orwell, ainda atormentado pelas sombras
do nazi fascismo,e pela força do Stalinismo, orquestra uma visão aterradora do futuro,
onde um governo totalitário controla o povo, oprimindo com brutalidade,
manipulando a verdade e suprimindo qualquer espécie de pensamento
libertário. Sobre o futuro, Orwell revela seu parecer através da fala de
uma de suas personagens: “Se quer uma visão do futuro, imagine uma bota
pisando num rosto humano para sempre”. O romance foi levado para as
telas pela primeira vez em 1956, dirigido por Michael Anderson, mas a
versão mais fiel foi realizada simbolicamente em 1984 por Michael
Radford, com as presenças marcantes de John Hurt, no papel de Winston
Smith, o homem massacrado sistematicamente pelo poder do estado, e
Richard Burton, como O’Brien, o homem frio e metódico que se propõe a
ser uma ferramenta a serviço da opressão.
Este olhar amargo e pessimista com relação ao futuro, gera o que
convencionamos chamar de “contra-utopia”, ou seja, uma subversão dos
valores propostos por Thomas Morus. A sociedade arquitetada por Orwell
sofre de um processo de diluição do indivíduo em prol de uma
coletividade acéfala, controlada por uma entidade (o estado) quase
onipresente conhecida como “Big Brother”. Os conflitos ideológicos
iniciados no século XIX com o advento do marxismo, resultaram numa
proliferação de utopias e ideologias, conservadoras, liberais e
anárquicas, que tiveram como efeito colateral a ascensão de sistemas
ditatoriais no século XX. O filósofo Paul Ricoeur, em seu ensaio
“Ideologia e Utopia”, cita a “utopia humanitária liberal”, assim
classificada por Mannhein, e aponta: “Esta forma é utópica na medida em
que nega, e por vezes muito ingenuamente, as fontes reais do poder, na
propriedade, no dinheiro, na violência e em todos os tipos de forças não
intelectuais. Dá exagerada ênfase ao poder da inteligência para formar e
moldar”. Orwell não subestima o poder da violência, da eficácia das
baionetas em calar vozes e apagar ideias, e sustenta de forma imperativa
em seu romance: “Poder significa estraçalhar a mente humana e
reconstituí-la dentro do seu molde”.
Este humanitarismo “ingênuo”, esta fé utópica num futuro repleto de
oportunidades, onde os valores intelectuais teriam suma importância na
construção de uma sociedade mais justa, podem ser constatados em um
Brasil pré-ditatorial, em que o progresso e a democracia semeavam a
esperança de uma nação rica e igualitária, então, em março de 1962, o
golpe de estado imposto pelo regime militar transformou o país em uma
capítulo sombrio, que poderia constar de algum livro de Orwell. Um
processo de reforma instaurou-se no país, não tão radical, mas tão
danoso quanto os que ocorreram em países como a China, Rússia ou a
Alemanha. O sistema de reeducação apresentado por Orwell em seu romance,
em que o passado histórico é gradualmente destruído ou modificado é
completamente devastador. Apagar o passado de um povo afeta diretamente
sua identidade cultural, e um povo sem identidade torna-se um barro sem
vida, pronto para ser modelado. Porém, sabidamente militares brasileiros
usaram de artimanhas dignas de Maquiavel para controlar a sociedade, da
força bruta passando pelo cerceamento da liberdade de expressão, até a
manipulação da propaganda, inculcando na sociedade um espírito ufanista
que pode explicar, em parte, o apoio civil à intervenção militar. Os
mesmos métodos foram utilizados com sucesso durante o regime nazista
alemão, e foram uma inspiração na composição da figura controladora de
“Big Brother”.
Segundo Saint-Simon: “A ideologia é sempre uma tentativa de legitimar
o poder, ao passo que a utopia é sempre uma tentativa de substituir o
poder por outra coisa qualquer”. Ambas, no entanto, almejam de uma forma
ou outra o poder, e esta é palavra chave sob a qual tudo gira no
romance de Orwell, catalisando ações e gerando consequências
irreversíveis no espírito humano.
Escrito em 1949, curiosamente o pesadelo de um escritor antecipou o
advento da televisão como veículo de manipulação, e previu aberrações
ideológicas como a caça as bruxas do Macartismo, e as barbaridades
cometidas nas ditaduras sul americanas. Ao subverter as propostas
utópicas Orwell nos legou um exercício de reflexão sobre a liberdade e a
natureza humana, e a importância do indivíduo, ele só não previu que
uma de suas criações, um estandarte da intolerância chamado “Big
Brother”, seria despido de sua simbologia original para tornar-se um
símbolo da mediocridade televisiva; porém, indiretamente acertou com
relação ao poder de alienação da mesma.
http://cinemaexmachina.wordpress.com/2010/11/04/1984-george-orwell-e-a-subversao-da-utopia/
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