Cidades Mais Solidárias Surgirão
Ao Longo do Século 21
Por Carlos Cardoso Aveline.
Os
povos têm alma. As cidades têm alma. A ciência esotérica afirma que o
próprio universo não só possui uma alma, mas evolui segundo um plano
divino definido por ela. E também que nada pode existir sem uma essência sutil
inspiradora, seja ela chamada de alma, espírito, buddhi ou mônada. É ela que
define a razão de ser, a meta e o ideal de cada um de nós.
A alma está presente em todas as coisas, mas nem sempre somos capazes de
aceitar este fato, e às vezes agimos como se o mundo fosse “desalmado”. Para
perceber com nitidez a existência da alma fora de nós, é necessário
fortalecer profundamente o contato com ela em nosso interior. Perceber é
sempre uma questão de sintonia.
A compaixão e a solidariedade brotam quando nossa alma está presente de fato no
modo como olhamos as coisas.
A palavra sânscrita namastê, uma saudação indiana tradicional, pode ser
traduzida da seguinte maneira: “A alma imortal presente em mim saúda a alma
imortal presente em você”.
Mário Quintana escreveu que a amizade sincera ocorre quando “a alma muda de
casa”. Colocamos nossa alma em tudo aquilo com que nos identificamos.
(...)
Desse ponto de vista, nenhuma crise ou grau de violência urbana pode alterar a
realidade básica: as cidades brasileiras são grandes conglomerados de almas,
verdadeiros oceanos de energia espiritual, mental e emocional. Os dramas que
elas vivem constituem os desafios necessários para que a alma coletiva
desperte, perceba o seu próprio potencial de paz e harmonia ― e mude o mundo
físico como consequência da sua mudança interior.
A alma coletiva de uma população urbana ameaçada
pela contaminação ambiental, violência, pobreza e corrupção dos
administradores está necessariamente confusa e desorientada. Mas ainda vive e
espera por uma chance de viver melhor.
O escritor Júlio Verne estava certo ao afirmar que uma cidade é como um livro.
A arquitetura, o trânsito de veículos e pessoas, os sons, a organização
espacial e os fluxos energéticos de um ambiente urbano não ocorrem por acaso.
São mensagens: são enigmas.
Podemos decifrar seu significado, porque a alma
humana em evolução se reflete dinamicamente em cada cidade com todas as suas
luzes e sombras. Os sentimentos de poder, ambição, desânimo, amor,
solidariedade e egoísmo constroem a cidade noite e dia, fazendo dela um cenário
complexo que combina com guerra e paz, decadência e renovação.
Há duas grandes tendências históricas perfeitamente legíveis no “livro” das
nossa cidades.
Uma é a desagregação
geral de uma sociedade que só acredita em valores materiais e sensoriais, mesmo
quando mantém uma crença formal ou verbal em Deus. O grande centro das atenções
dessa sociedade é o dinheiro em si, desvinculado do bem comum a que deveria
servir. O crime, as drogas e a violência são agentes dessa destruição.
Dirigentes políticos e econômicos dão o exemplo, roubando, com diferentes graus
de sutileza, o dinheiro do povo trabalhador. Incapazes de compreender essa
tendência e de localizar a alternativa, os movimentos sociais articulam
resistências simbólicas, verbais, e se acomodam ao processo enquanto sofrem a mesma
desagregação em si mesmos.
A outra grande tendência visível nas cidades é o surgimento de novas relações
de produção e novos laços humanos baseados em uma filosofia de vida que
transcende o mundo visível dos cinco sentidos e busca valores permanentes.
Essa nova sociedade surge no meio da antiga, trazida por uma nova religiosidade
vivencial e não-dogmática, pelos movimentos espiritualistas, a ioga, (...), o desenvolvimento da inteligência emocional no trabalho e na
família, os programas de estímulo à criatividade, a arte comunitária, (...), a alimentação natural e integral, a economia solidária e a
defesa do meio ambiente.
O novo e o velho estão presentes na cidade, e é preciso talento para
focar nossa consciência onde realmente queremos. A alma inspiradora desligou-se
de certas estruturas sociais e econômicas antigas, que por isso são sinais
crescentes de “enlouquecimento” e se desagregam.
A alma da vida anima agora o que é novo. A alternativa surge em pequena
escala, com os erros, as dúvidas e a falta de experiência típicos de toda
tendência histórica que está começando. Mas as sementes da nova cidade já
germinam dentro da velha e têm à sua disposição antigos modelos e
arquétipos, alimentados durante milênios pelo constante sonho humano de
uma fraternidade universal.
(...)
Em 1516, Thomas More criou sua “Utopia”, influenciado não só pelos sábios
gregos, mas pelos relatos recentes de descobrimentos. Em sua ilha ideal,
as casas não têm fechaduras ou cadeado, porque não há miséria social ou roubos.
Em 1602, Tommaso Campanella escreveu “A Cidade do Sol” em um lugar incômodo
onde a luz solar não chegava: sua cela de preso político, onde havia sido
colocado pela Inquisição após liderar uma revolução que objetivara proclamar na
Calábria uma república universal. Campanella foi tremendamente torturado e só
escapou da morte porque se fingiu de louco: a Inquisição não matava alguém a
quem considerasse insano. Décadas mais tarde, ele saiu da prisão e foi viver na
França, protegido por Richelieu. Deu aulas na Sorbonne. [1] Francis Bacon publicou em 1627 “A Nova Atlântida”, livro que
descreve uma república ideal governada por sábios. (...)
Para que possamos compreender o futuro, a importância da contribuição de Thomas
More, Tommaso Campanella, Francis Bacon e dezenas de outros pensadores e
ativistas utópicos é enorme.
Já no início do século 19, por exemplo, o
industrial inglês Robert Owen proclamou:
“Chegou o momento em que uma
mudança deve ser produzida. Uma nova era deve começar. O espírito humano, que
até agora esteve envolvido nas trevas da ignorância, deve finalmente
iluminar-se. É chegado o tempo em que todas as nações do mundo, em que todos os
homens de todas as raças e de todos os climas sejam levados a um novo tipo de
conhecimento. Haverá uma só linguagem e uma só nação. As grandes invenções
modernas, os melhoramentos e o progresso contínuo das ciências técnicas e
mecânicas (que, sob o regime do individualismo, aumentaram a miséria e a
imoralidade dos produtores industriais) estão destinados, depois de ter causado
tantos sofrimentos, a destruir a pobreza, a imoralidade e a miséria. As
máquinas e as ciências são chamadas a fazer os trabalhos penosos e insalubres” [2]
Dono de uma fortuna, Owen comprou uma grande extensão de terras nos Estados
Unidos em 1825, e fundou a comunidade “New Harmony”. A experiência durou pouco:
três anos depois ele havia perdido 80% da sua riqueza. Mas Owen não desistiu.
Voltou para a Europa, prosseguiu expondo suas idéias de várias maneiras e é
considerado um dos fundadores do socialismo. Depois de Owen vieram
Charles Fourier e outros pensadores utópicos. Em seguida surgiram os chamados
socialistas científicos: Karl Marx e Friedrich Engels queriam eliminar a
contradição entre cidade e campo, dando todo o poder ao trabalhador.
Nenhum dos projetos urbanísticos e sociais voltados para a construção de uma
cidade solidária e justa teve até hoje êxito marcante, no Ocidente capitalista,
porque o pensamento humano não foi capaz de resolver de modo integrado e
coerente ― simultaneamente ― os desafios psicológicos, espirituais,
econômicos, políticos, culturais e urbanísticos que o ser humano enfrenta.
A chave do êxito é uma estratégia integrada por todos esses aspectos da vida. O
pensamento holístico surgiu no século 20 e tem tudo para transformar-se em uma
prática social vitoriosa ao longo do século 21. Ele traz consigo uma
consciência multidimensional, e reintegra o ser humano à natureza.
A partir das décadas de 1920 e 1930, o arquiteto norte-americano Frank Lloyd
Wright elaborou uma das propostas urbanísticas mais interessantes para o
futuro. Ele começa fazendo uma crítica da velha cidade, que se desagrega
porque perdeu contato com a alma:
“A felicidade do cidadão convenientemente 'urbanizado' consiste em aglutinar-se
a outros dentro da desordem, iludido pelo calor hipnótico e pelo contato
forçado com a multidão. A violência e o rumor mecânico da grande cidade agitam
sua cabeça 'urbanizada' e enchem seus ouvidos 'urbanizados', assim como
outrora o canto dos pássaros, o sussurro do vento nas árvores, as
vozes dos animais ou dos seres amados enchiam seu coração.(...) Assim, o
cidadão verdadeiramente 'urbanizado', escravo do instinto gregário, está
submisso a um poder estranho, do mesmo modo que o trabalhador medieval era escravo
de um rei ou de um Estado.” [3]
A proposta de Wright é a ampliação do contato da cidade com os ritmos naturais
da vida e, portanto, com o meio ambiente e a paisagem. (...)
(...) proposta estratégica de uma cidade orgânica:
1 - Reforma agrária. Ela diminui a pressão sobre as cidades. Mas
não basta distribuir terras. É preciso dar assistência técnica, criar relações
de produção solidárias e transparentes, dar estímulos para que as famílias
rurais pemaneçam no campo, e garantir que a produção seja ecologicamente
correta, preservando o ecossistema e produzindo alimentos sem agrotóxicos.
2 - Valorizar as comunidades rurais e as pequenas cidades do interior.
Dar apoio às pequenas empresas familiares, ao trabalho artesanal e manual, à
produção em pequena escala, com tecnologia tradicional, que dá emprego e
valoriza o ser humano, e que predomina nas pequenas cidades. Sustituir a
adoração do que é “instantâneo” e da rapidez sem significado por algo que é
mais valioso: o respeito à vida.
3 - Em todas as cidades e no campo, colocar a alta tecnologia a serviço
da vida. A informatização e as novas tecnologias não devem mais
provocar desemprego. Podem, isto sim, aumentar a qualidade e reduzir o preço
dos bens e serviços prestados. Irão reduzir a jornada de trabalho, naturalmente
sem redução do salário dos trabalhadores. Com o aumento da produtividade do
trabalho nas últimas décadas, os lucros dos investidores aumentaram de modo
absurdo. A distorção deve ser corrigida reduzindo a jornada de trabalho.
Sindicatos e movimentos sociais devem ter a coragem de levantar essas questões.
Os trabalhadores terão que aprender a usar bem o novo tempo de lazer ―
por exemplo em trabalho voluntário pela comunidade.
4 - Criar projetos habitacionais alternativos e voltados para a
cidadania. O que nos impede, a final, de organizar cooperativas
habitacionais reunindo pessoas comprometidas com a construção de uma cidade
fraterna? Absolutamente nada, a não ser o nosso costume de esperar
soluções centralizadas e de cima para baixo. Ora, nenhum governante
criará a cidade orgânica por decreto. Ela terá que surgir com a prática
autônoma dos cidadãos através de pequenos “territórios livres”, onde se vá
acumulando a experiência do novo. Nesses novos empreendimentos, haverá graus
diversos de socialização e ajuda mútua entre os vizinhos, reunindo-se as
vantagens da vida comunitária com as vantagens na vida isolada.
5 - Na questão de segurança, o guarda do quarteirão. O
policial ou guarda fica sempre no mesmo local, uma área de um ou dois
quarteirões. Assim, ele conhece os moradores e o ritmo da vida das pessoas e
facilmente percebe quando há algo estranho. Ele também pode ajudar em outras
situações de emergência ou serviços básicos.
6 - Administração participativa. Reuniões por bairro e
por quarteirão para discutir assuntos comuns e confraternizar. A experiência do
orçamento participativo, em que cada bairro determina as prioridades de
investimentos em sua área, é um precedente valioso para a cidade da nova era.
Já teve êxito em capitais como Porto Alegre e Brasília. Na medida em que
se resgate a ética social, essas experiências tendem a voltar.
7 - Redução da necessidade de viagens urbanas. A cidade e a
atividade econômica devem ser planejadas de modo que os meios de
transporte possam ser menos usados. A boa informação é útil neste ponto.
Com a circulação mais fácil das informações via computador, telefone celular e
internet, as pessoas podem trabalhar em casa, sem necessidade de provocar
engarrafamentos e poluição atmosférica com automóveis. Isso não significa
que as pessoas não sairão mais de casa: a vida no bairro será mais intensa. A
bicicleta ganhará importância. Com a jornada de trabalho menor,
todo o mundo terá mais tempo para participar das questões comunitárias e
conviver com a natureza. Cada cidadão atuará multidimensionalmente, assumindo o
papel de ativista social, ecologista, jogador de futebol, plantador de árvores
ou jardineiro, além de pai, marido e amigo; e preservará a saúde fazendo
exercícios físicos moderados.
Esses sete pontos são exemplos. Há muitos outros por serem desenvolvidos.
Desse modo, a cidade voltará a respeitar sua alma. Cada casa será certamente um
local mais pacífico e harmonioso, talvez um “templo”, como queria John Ruskin.
A vida do cidadão ganhará um significado novo e mais profundo.
(...)
É possível que, enquanto não surgirem e amadurecerem novas práticas urbanas nas
grandes cidades, muita gente continue transferindo residência para cidades
menores ou para chácaras suburbanas, como ocorre hoje. Esta é outra
maneira válida de retomar contato com os ritmos naturais da vida. Aos poucos,
cresce o número de cidadãos que se espalham por pequenas cidades de Goiás e
outros Estados do Centro-Oeste. Trabalham com terapias alternativas,
agricultura orgânica ou pequenas casas comerciais e restaurantes. Vivem em paz,
meditam, preservam a natureza e respiram livremente o ar puro. Outros fazem
como determinada professora do Rio de Janeiro, na década de 1990. Ao
aposentar-se, ela foi viver na periferia de uma cidade pobre e violenta. Lá, com
o apoio de amigos, abriu um centro de ação educacional para crianças e
adolescentes pobres. Vivia feliz, profissional e pessoalmente: trabalhava
com arte ― e com alma.
É assim que se cria a cidade da nova era. Não só criticando ou lamentando o que
está velho e em desagregação, mas construindo com audácia o novo que cresce
inevitavelmente a cada dia, de modo silencioso e quase invisível.
Artigo:
http://www.filosofiaesoterica.com/ler.php?id=276#.UkgEVz-1uvM
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