A última grande mudança de paradigma deu-se quando optamos, na
busca por mais liberdade, pelo deslocamento do espírito para a matéria, não
percebendo que estávamos criando um novo valor único e absoluto. Com o tempo
elevamos o econômico ao topo da hierarquia de valores e este passou a orientar
toda relação humana, reduzindo as possibilidades, nos enquadrando a valores
absolutistas e criando uma nova servidão humana através da total submissão à
razão técnica como encarnação de novos deuses fazendo-nos acreditar no crescimento econômico
como caminho único para o desenvolvimento; no dinheiro como signo de poder; e no consumo
como forma de prazer.
Não se trata de não reconhecer os benefícios do
desenvolvimento técnico e suas realizações, mas, apenas recordar que o homem se
plasma através de um conjunto de possibilidades culturais e que deve sempre
procurar impedir qualquer tipo de domínio que limite o seu ser.
O controle da força do conjunto de possibilidades cria uma
nova Tradição, regredindo-se ao
monismo e marginalizando o múltiplo e o diferente; daí se dizer que vivemos em
uma sociedade de pensamento único e a constatação do enorme aumento da
intolerância em todos os segmentos, isso em plena modernidade em que cada um estaria
autorizado a orientar-se por crenças distintas.
Quando mudanças são interpretadas exclusivamente como determinismo do progresso, ou de
qualquer outro, o humano aparece como mera criatura que se torna um objeto intrínseco
à práxis absolutista, incapaz de plasmar a história, permitindo-se ser
manipulado e abrindo mão de ser sujeito soberano capaz de exercer a democracia. Como alerta Finkielkraut:
“Não nos alegremos muito
rapidamente; a indiferença pelas grandes causas traz, em contraposição, a
resignação diante da força. O fanatismo que desaparece das sociedades
ocidentais está arriscado a ceder à outra enfermidade da vontade não menos
inquietante: o espírito de colaboração.”
De fato, torna-se difícil acreditar na utopia, como veículo
de inovação, quando o ser, e a sua realidade, passa a acreditar em uma predestinação qualquer.
Para reduzir a sociedade a um mero espectador do jogo e
submetê-lo ao poder criou-se o antiutopismo, massificou-se a ideia de que as utopias
são veículos exclusivos dos modelos totalitários, ao mesmo tempo em que se
alimentava a ideia do subjetivismo egoísta, com as máximas da competitividade e
da meritocracia. O objetivo foi travar
qualquer possibilidade de mudança do “status quo”, trazendo a paralisia, o imediatismo,
e o conformismo do ser humano.
Dito isso, será preciso uma refundação humanista, com todas
as transformações culturais que isso implica, inclusive no plano socioeconômico,
para que a humanidade volte a exercer a sua liberdade plena. Será preciso transpor,
tal com o ocorreu a partir da idade média, as referências fatalistas modernas, e para tal é necessário que resgatemos a
subjetividade e a utopia na criação da história, trazendo de volta a nossa capacidade de
criticar os valores estabelecidos.
Com o modernismo esperava-se que para cada valor houvesse um
modo de ser, e ainda que cada humano pudesse experimentar várias diversidades,
desde que, ao vivenciá-las, respeitasse as leis e regras. Mas, como resultado
atual do modelo não mais se experimenta a diversidade e temos cada vez mais dificuldades
de cumprir as regras de convivência.
Mas, o que é o futuro sem mudanças evolutivas, que começa
por um choque de ideias ou valores e que se aprimoram com o tempo?
Democracia deveria ser definida como o exercício da ordem
existente, estimulando as utopias, que, por sua vez, romperiam com os
fundamentos dessa mesma ordem, deixando-a livre para evoluir em direção à ordem
seguinte. Ao contrário, o que se vê é um
mundo que, através das suas elites, tem pavor à modificação, paralisando a
democracia e sua necessidade constante de aprimoramento.
O próprio atual liberalismo surgiu de um conflito com a
ordem existente (utopia). São as crises
históricas que apontam o exato momento de transformações na sociedade, quando
se deixa de considerar verdadeiros os valores e as crenças vigentes (a nova
utopia), - e parece que chegamos ao pico dessa condição em 2008, - observado em
movimentos contínuos anteriores, notadamente os da década de sessenta, onde se
busca alternativas à praxe estabelecida.
Tais movimentos ocorrem por que o campo da liberdade não se
tem afirmado a contento na vida pública durante a trajetória do capitalismo
diante das fortes limitações na esfera econômica das pessoas. A revolução
individualista, libertária e igualitária, não conseguiu implementar a autonomia
do ser humano, mesmo porque a acumulação que o capitalismo proporcionou trouxe
como consequência cultural o hiperindividualismo possessivo e egoísta, ao mesmo
tempo em que, paradoxalmente, despersonaliza
o ser humano até torná-lo descartável e plenamente redutível à função que ocupa
no interior do sistema.
A mentalidade individualista torna-se possessiva quando a
consciência subjetiva da autonomia eclipsa a consciência objetiva da
dependência social. E assim o ser humano se submete à percepção de se estar no
mundo por conta própria (descartável), um subjetivismo delirante, que o leva a só
vislumbrar o interesse pessoal (egoísmo), passando a conceber as convenções
sociais à maneira dos sofistas: como um mal necessário diante da ameaça do
outro e como um entrave à sua suposta natureza acumulativa, oportunista e prazerosa
(possessivo).
Trata-se da antissociabilidade do indivíduo que passa a ter dificuldades
de convivência com o seu semelhante a partir do momento que enxerga este como
um concorrente usurpador dentro do conceito de dominação e opressão, o que
reduz toda subjetividade humana ao campo da introspecção e do alargamento
doentio do eu, com suas expressões de narcisismo e o desejo de potencialização
da dominação.
O individualismo possessivo se distingue do individualismo
humanista pelo seu alto grau de egolatria, e se ela não for contida por formas
universais de consciência – religião, moral, civismo, humanidade, nação, etc. –
ela se transforma, inevitavelmente, em uma fonte incontrolável de dissolução
social. Essa é a diferenciação do individualismo clássico para o moderno.
Além da coisificação do ser humano, vivemos ainda sobre a
influência dos padrões patriarcais da civilização judaico-cristã o que nos
impulsiona ao autoritarismo, à misoginia e à homofobia.
Preocupações puramente pessoais gera a apatia social que
favorece a experiência atual com um mínimo de resistência. É o refluxo dos
interesses universais, que provoca a despolitização, a descrença, a
desmobilização e o esgotamento de qualquer alternativa que gere mudanças.
De tal modo que o tipo humano atual está refletindo um
indivíduo que, tendo aceitado como fatalidade
o mundo dado, ele como trabalhador submisso e consumidor insano, não consegue
vislumbrar qualquer outro horizonte da liberdade para além daquele que lhe
oferece à maleabilidade do próprio ego, ou, em outras palavras, a substituição
da busca da felicidade pela realização do prazer.
Segundo o psicólogo americano Martin Seligman, da
Universidade da Pensilvânia, felicidade é a soma de três coisas diferentes:
prazer, engajamento e significado.
Ficamos limitados às mudanças autorizadas e direcionadas, e
uma vez esgotados estes ciclos de prazer, o ego indelevelmente buscará a
violência, a opressão e a corrupção.
Para se evitar tal desfecho é preciso que os indivíduos voltem
a reconhecer a sua autonomia criativa e legisladora, identificando o mundo
humano como obra coletiva construída por vontades individuais, que reconheça a
história como obra humana e que toda transformação significativa depende da
capacidade de cada um em contribuir para a renovação, negando os valores impostos
e acreditando na busca de um novo significado, só desta forma se consegue
estabelecer as bases gerais de uma nova civilização.
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