sábado, 8 de junho de 2013

Os novos Deuses

A última grande mudança de paradigma deu-se quando optamos, na busca por mais liberdade, pelo deslocamento do espírito para a matéria, não percebendo que estávamos criando um novo valor único e absoluto. Com o tempo elevamos o econômico ao topo da hierarquia de valores e este passou a orientar toda relação humana, reduzindo as possibilidades, nos enquadrando a valores absolutistas e criando uma nova servidão humana através da total submissão à razão técnica como encarnação de novos deuses fazendo-nos acreditar no crescimento econômico como caminho único para o desenvolvimento; no dinheiro como signo de poder; e no consumo como forma de prazer.

Não se trata de não reconhecer os benefícios do desenvolvimento técnico e suas realizações, mas, apenas recordar que o homem se plasma através de um conjunto de possibilidades culturais e que deve sempre procurar impedir qualquer tipo de domínio que limite o seu ser.

O controle da força do conjunto de possibilidades cria uma nova Tradição, regredindo-se ao monismo e marginalizando o múltiplo e o diferente; daí se dizer que vivemos em uma sociedade de pensamento único e a constatação do enorme aumento da intolerância em todos os segmentos, isso em plena modernidade em que cada um estaria autorizado a orientar-se por crenças distintas.

Quando mudanças são interpretadas exclusivamente como determinismo do progresso, ou de qualquer outro, o humano aparece como mera criatura que se torna um objeto intrínseco à práxis absolutista, incapaz de plasmar a história, permitindo-se ser manipulado e abrindo mão de ser sujeito soberano capaz de exercer a democracia. Como alerta Finkielkraut:

“Não nos alegremos muito rapidamente; a indiferença pelas grandes causas traz, em contraposição, a resignação diante da força. O fanatismo que desaparece das sociedades ocidentais está arriscado a ceder à outra enfermidade da vontade não menos inquietante: o espírito de colaboração.

De fato, torna-se difícil acreditar na utopia, como veículo de inovação, quando o ser, e a sua realidade, passa a acreditar em uma predestinação qualquer.

Para reduzir a sociedade a um mero espectador do jogo e submetê-lo ao poder criou-se o antiutopismo, massificou-se a ideia de que as utopias são veículos exclusivos dos modelos totalitários, ao mesmo tempo em que se alimentava a ideia do subjetivismo egoísta, com as máximas da competitividade e da meritocracia.  O objetivo foi travar qualquer possibilidade de mudança do “status quo”, trazendo a paralisia, o imediatismo, e o conformismo do ser humano.

Dito isso, será preciso uma refundação humanista, com todas as transformações culturais que isso implica, inclusive no plano socioeconômico, para que a humanidade volte a exercer a sua liberdade plena. Será preciso transpor, tal com o ocorreu a partir da idade média, as referências fatalistas modernas, e para tal é necessário que resgatemos a subjetividade e a utopia na criação da história, trazendo de volta a nossa capacidade de criticar os valores estabelecidos.

Com o modernismo esperava-se que para cada valor houvesse um modo de ser, e ainda que cada humano pudesse experimentar várias diversidades, desde que, ao vivenciá-las, respeitasse as leis e regras. Mas, como resultado atual do modelo não mais se experimenta a diversidade e temos cada vez mais dificuldades de cumprir as regras de convivência.

Mas, o que é o futuro sem mudanças evolutivas, que começa por um choque de ideias ou valores e que se aprimoram com o tempo? 

Democracia deveria ser definida como o exercício da ordem existente, estimulando as utopias, que, por sua vez, romperiam com os fundamentos dessa mesma ordem, deixando-a livre para evoluir em direção à ordem seguinte.  Ao contrário, o que se vê é um mundo que, através das suas elites, tem pavor à modificação, paralisando a democracia e sua necessidade constante de aprimoramento.

O próprio atual liberalismo surgiu de um conflito com a ordem existente (utopia).  São as crises históricas que apontam o exato momento de transformações na sociedade, quando se deixa de considerar verdadeiros os valores e as crenças vigentes (a nova utopia), - e parece que chegamos ao pico dessa condição em 2008, - observado em movimentos contínuos anteriores, notadamente os da década de sessenta, onde se busca alternativas à praxe estabelecida.

Tais movimentos ocorrem por que o campo da liberdade não se tem afirmado a contento na vida pública durante a trajetória do capitalismo diante das fortes limitações na esfera econômica das pessoas. A revolução individualista, libertária e igualitária, não conseguiu implementar a autonomia do ser humano, mesmo porque a acumulação que o capitalismo proporcionou trouxe como consequência cultural o hiperindividualismo possessivo e egoísta, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente,  despersonaliza o ser humano até torná-lo descartável e plenamente redutível à função que ocupa no interior do sistema.

A mentalidade individualista torna-se possessiva quando a consciência subjetiva da autonomia eclipsa a consciência objetiva da dependência social. E assim o ser humano se submete à percepção de se estar no mundo por conta própria (descartável), um subjetivismo delirante, que o leva a só vislumbrar o interesse pessoal (egoísmo), passando a conceber as convenções sociais à maneira dos sofistas: como um mal necessário diante da ameaça do outro e como um entrave à sua suposta natureza acumulativa, oportunista e prazerosa (possessivo).

Trata-se da antissociabilidade do indivíduo que passa a ter dificuldades de convivência com o seu semelhante a partir do momento que enxerga este como um concorrente usurpador dentro do conceito de dominação e opressão, o que reduz toda subjetividade humana ao campo da introspecção e do alargamento doentio do eu, com suas expressões de narcisismo e o desejo de potencialização da dominação.

O individualismo possessivo se distingue do individualismo humanista pelo seu alto grau de egolatria, e se ela não for contida por formas universais de consciência – religião, moral, civismo, humanidade, nação, etc. – ela se transforma, inevitavelmente, em uma fonte incontrolável de dissolução social. Essa é a diferenciação do individualismo clássico para o moderno.

Além da coisificação do ser humano, vivemos ainda sobre a influência dos padrões patriarcais da civilização judaico-cristã o que nos impulsiona ao autoritarismo, à misoginia e à homofobia.

Preocupações puramente pessoais gera a apatia social que favorece a experiência atual com um mínimo de resistência. É o refluxo dos interesses universais, que provoca a despolitização, a descrença, a desmobilização e o esgotamento de qualquer alternativa que gere mudanças.

De tal modo que o tipo humano atual está refletindo um indivíduo que, tendo aceitado como fatalidade o mundo dado, ele como trabalhador submisso e consumidor insano, não consegue vislumbrar qualquer outro horizonte da liberdade para além daquele que lhe oferece à maleabilidade do próprio ego, ou, em outras palavras, a substituição da busca da felicidade pela realização do prazer. 

Segundo o psicólogo americano Martin Seligman, da Universidade da Pensilvânia, felicidade é a soma de três coisas diferentes: prazer, engajamento e significado.

Ficamos limitados às mudanças autorizadas e direcionadas, e uma vez esgotados estes ciclos de prazer, o ego indelevelmente buscará a violência, a opressão e a corrupção.

Para se evitar tal desfecho é preciso que os indivíduos voltem a reconhecer a sua autonomia criativa e legisladora, identificando o mundo humano como obra coletiva construída por vontades individuais, que reconheça a história como obra humana e que toda transformação significativa depende da capacidade de cada um em contribuir para a renovação, negando os valores impostos e acreditando na busca de um novo significado, só desta forma se consegue estabelecer as bases gerais de uma nova civilização.

Nenhum comentário:

Postar um comentário