O anti-herói tragicômico Carlitos, em sua faceta trabalhador industrial talvez tenha sido quem melhor traduziu a Grande Depressão (1929-1941) nos Estados Unidos. Charles Chaplin com seu filme Tempos Modernos (Modern Times,
1936) sintetizou como ninguém o período histórico marcado pelo
desemprego em massa, queda acentuada do produto interno bruto em
decorrência do declínio da produção industrial e dos preços das ações
subseqüente à Quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929.
A
Grande Depressão gerou grandes repercussões para a nação
norte-americana – cerca de 325 bilhões de dólares foram perdidos só em
bens. O declínio econômico trazido pela Depressão teria custado
aproximadamente um ano e dois meses de emprego. Entretanto, a fenda no
padrão de vida não se configurou de forma equânime para todas as
parcelas da população estadunidense. Oficiais das Forças Armadas,
pilotos de linhas aéreas, professores universitários e alguns operários
especializados se mantiveram estáveis. Alguns norte-americanos ainda
conseguiram prosperar em seus negócios, chegando em poucos casos
acumular fortunas significativas. É evidente que a maior parte da
população não se enquadrou nesse perfil. (GRAHAM JUNIOR, 1976)
Trabalhadores
de áreas marginais sensíveis (como barbeiros, músicas, jardineiros,
etc.) foram aqueles que mais sentiram as repercussões negativas da
crise. Professores primários, principalmente, os que trabalhavam em
escolas públicas, somados a arquitetos, pequenos comerciantes e
agricultores sofreram um severo declínio em suas atividades. Os cidadãos
que não eram detentores do perfil sócio-ideal de trabalhador
(não-brancos, judeus, homens de meia idade e velhos, etc.) tiveram na
Depressão a antecipação do tempo de dependência e angústia do fim da
vida.
Em suma, a Grande
Depressão delineou um quadro de mazelas sócio-econômicas traduzido no
desmoronamento das esperanças e no desespero pela sobrevivência,
sobretudo das camadas mais baixas da população que encarou fome,
superpopulação, desnutrição e doenças.
A
indignação com os turbulentos anos de crise que se configuravam não
poderia ter se ausentado do mundo das artes. Dentre as formulações
artísticas da época, o cinema talvez tenha sido um dos maiores elementos
de crítica – seja pelo molde realista seja pela sutileza da comédia.
Mesmo correndo o risco de transformarem-se em fracassos comerciais,
filmes como Black Legion (1937) com sua contestação a violências raciais e I Am Fugitive from a Chain Gang
(1935), crítica ao tratamento dado aos presos, ganharam destaque pela
ousadia e posição política firme contra os despropérios de uma nação
assolada pela crescente crise. Contudo é com o talento do humor de
Charles Chaplin em sua obra Tempos Modernos (Modern Times, 1936) que a crítica ao modo de produção capitalista e à reprodução social burguesa que se deu de forma mais genial.
Chaplin
esforça-se em delinear não somente concepções que abrangem as questões
trabalhistas em si, mas também uma perspectiva de humanidade em que a
busca pela felicidade é uma constante. A frase do início do filme pontua
a idéia central da obra: “Tempos Modernos. Uma história sobre a indústria, a iniciativa privada e a cruzada da humanidade em busca da felicidade.” (CHAPLIN, 1936)
O
personagem de Chaplin representa o trabalhador da primeira metade do
século XX em vários aspectos, contudo simultaneamente ressalta o
desajuste à modernidade burguesa. Por um lado, o industrial worker
se destaca da multidão como individualidade heróica que se identifica
com o público-massa (construção característica de Hollywood), mas por
outro, pontua uma tentativa frustrada de inserção na sociedade
capitalista traduzida na busca pelo anonimato (configurando-se em um
anti-herói problemático). (ALVES, 2005)
A
constante sensação de estranhamento com relação à sociedade é o
elemento central da tragicomicidade da película. Tanto no ambiente de
trabalho quanto em seu cotidiano sempre há um desajuste à realidade.
O
ambiente fabril nos traz muitas informações sobre os elementos
constitutivos do modo de produção capitalista e da sociedade
norte-americana da época. A linha de montagem fordista com sua extrema
especialização produz partes de mercadorias não-identificadas — Chaplin
não nos deixa saber o que está sendo produzido. Somente sabemos que é
uma fábrica de componentes elétricos (Electro Steel Corp.). O trabalhador perde a noção total de produto dada à divisão de tarefas. Desse modo, o trabalho ganha caráter abstrato.
Em uma cena mais adiante, Carlitos
volta à fábrica só que agora na condição de assistente de manutenção
das máquinas. Uma leitura possível é que o velho que acompanha Chaplin
represente os antigos artesãos metalúrgicos. A cena em que o
funcionário mais antigo fica preso nas engrenagens pode demonstrar que o
novo capitalismo marcado pelo taylorismo-fordismo suplantara o sistema
de produção artesanal.
Destaca-se
também nesse ambiente a tentativa de controle total do funcionário por
parte do capitalista. O capataz controla a linha de produção no que diz
respeito ao seu andamento, enquanto o capitalista dita a velocidade da
produção através de uma grande tela a la Big Brother
como na obra literária 1984 de George Orwell (1949). A utilização de uma
tela para o controle dos funcionários – o personagem de Chaplin é
observado até dentro do banheiro! – já tinha sido realizada no clássico
filme de ficção científica, Metropolis do cineasta alemão Fritz Lang em 1926.
A ligação com a máquina (fetiche do capital) é tão grande que o trabalhador industrial passa a ser parte dela. Tanto que Carlitos
é engolido por ela e, após um dia estressante dia de trabalho é imbuído
pela loucura. Já que não há o trabalhador perfeito como em Metropolis
(Lang, 1926) – onde é criado um robô incansável de afeições humanas –
tenta-se fazer do ser humano uma máquina — com a realização de trabalhos
cansativos e repetitivos em uma aviltante jornada de trabalho diária.
Um outro exemplo de controle total do capitalista sobre o funcionário é a tentativa de utilização da Máquina Alimentadora Bellows.
O mecanismo é anunciado por um vendedor mecânico (a máquina substitui o
vendedor humano!) como “um artefato prático para alimentar seus
empregados enquanto trabalham”. (CHAPLIN, 1936) Assim, procura-se
eliminar os tempos mortos da produção tal como concebe a teoria
taylorista. A tentativa é desastrosa. A sopeira dá uma pane e quase
eletrocuta o industrial worker interpretado por Charles Chaplin.
O sentimento de inadequação de Carlitos
com a realidade também se estende a outras atividades exercidas pelo
personagem. Logo após sair da prisão, ele procurou outro emprego:
conseguiu em um estaleiro naval. Esforça-se em seguir as ordens de um
superior: procurar um pedaço de madeira que fosse parecido com o que ele
tinha em suas mãos. Depois de explorar um pouco o terreno finalmente o
encontra. Mas é nesse ponto que ocorre a confusão. Por ainda estar
ambientado com a fábrica, não percebe as diversas utilizações possíveis
do material madeira, haja vista que devido à especialização de
seu trabalho, somente consegue apreender um uso para mesma. No caso, a
madeira que achou – dentre as várias funções possíveis para ela – servia
como trava para o navio ainda em construção. O navio para seu desespero
desliza e afunda por completo no lago. Os demais funcionários observam a
cena estarrecidos. Carlitos envergonhado decide voltar para a prisão por se sentir inadaptado para aquela realidade. (ALVES, 2005)
Devido
a esse estranhamento constante, o personagem chaplino não consegue
permanecer por muito tempo no mesmo emprego. Como um artista circense
que foi desde a infância, Carlitos se desdobra em funções que
vão desde operário da indústria, passando por vigia de loja de
departamento e auxiliar de manutenção de máquinas até garçom e showman em um bar à noite. O personagem não chega a ser exatamente o que mais tarde o sociólogo Huw Beynon chamou de trabalhador hifenizado,
uma vez que tal categoria se caracteriza no emprego baseado em um
contrato que não segue uma padronização específica no qual o trabalho
pode ser temporário ou ocasional; autônomo, doméstico ou franqueado; por
meio expediente ou integral; em que diversas atividades são exercidas
pelo mesmo indivíduo em diferentes horários do dia ou da noite. (BEYNON,
1995) Carlitos teve vários empregos, porém não permaneceu
atrelado a eles simultaneamente. O personagem de Chaplin não teve várias
ocupações com o objetivo de tentar completar sua renda mensal ou
semanal, mas sim devido à sua inadaptação ao serviço. A mudança de
emprego é constante. Portanto, a questão é o estranhamento e não a
flexibilização do mundo do trabalho.
Charles
Chaplin não se conteve em explicitar apenas o mundo do trabalho:
evidenciou também o desdobramento da modernidade burguesa na vida
social. A internação no hospício – provavelmente inspirado em sua mãe
que também teve um surto nervoso –, assim como a clausura no presídio –
após ter sido confundido com um líder comunista – retrata os espaços
onde os que não servem para o trabalho são alocados pela sociedade
burguesa. (HALE, 2006; ALVES, 2005)
O
sofrimento seja físico ou mental é fruto do processo de
industrialização frenético em que o doce trabalhador – de tantas
atribuições – é na verdade a figura mais atormentada do filme. A cena em
que Chaplin canta e dança ao som da música Nonsense Song é o real momento em que o industrial worker pode se libertar. Naquele momento ele pode ser ele mesmo, gozando da liberdade plena de sua vontade.
No
final do filme a sua viagem para o horizonte junto à Paulette Goddard
pode ser interpretada como a morte social dos personagens. Tentar
escapar da sociedade burguesa – simbolizada pela caminhada na estrada
vazia sem nada a frente – é algo inconcebível, haja vista que
não podemos nos isolar socialmente. Desse modo, o Vagabundo (The Tramp) e a Garota (The Gamin) parecem estar destinados a não-existência. (SUSMAN apud GOLDMAN, 2004)
Portanto,
o filme de Charles Chaplin reportou-se às péssimas condições de
trabalho — as árduas horas de trabalho e o desempenhar repetitivo do
apertar parafusos e puxar de alavancas — decorrente da maior
especialização da linha de produção fordista. Com tal divisão de tarefas
não é mais permitido ao trabalhador saber o que afinal estava
produzindo: como o trabalhador não participa das demais etapas do
processo produtivo ele perde a noção total de produto. Tanto que para
expressar esse fenômeno, Chaplin não nos deixa saber que produto a
indústria no filme está produzindo.
As
características do fordismo ainda estão presentes no mundo atual. O
sociólogo Huw Beynon, especialista do mundo do trabalho, ao reiterar
Ritzer ressalta que tal concepção, não só de trabalhador, mas também de
consumidor ainda estariam em voga:
“Muitas características do fordismo também são encontradas no estilo de McDonald's: a homogeneidade dos produtos, a rigidez das tecnologias, as rotinas padronizadas de trabalho, a desqualificação, a homogeneização da mão-de-obra (e do freguês), o trabalhador em massa e a homogeneização do consumo (...) nestes e em outros aspectos, o fordismo continua vivo e forte no mundo moderno.” (RITZER apud BEYNON, 1995, p.12)
Nesse sentido, Tempos Modernos (Modern Times,
1936), último filme mudo produzido por Charles Chaplin ainda soa atual.
Em uma sociedade marcada pela complexidade, onde os indivíduos são
regrados pelos segundos precisos do relógio, Carlitos
conquistou o mundo com sua simplicidade convertendo-se em um dos maiores
gênios do cinema de todos os tempos – sejam eles modernos ou não!
Por: Cesar Dutra Inácio
http://www.tempopresente.org/index.php?option=com_content&view=article&id=1894:resenha-tempos-modernos-1936&catid=26&Itemid=171
Nenhum comentário:
Postar um comentário