Sob o domínio do medo
Editorial do Le Monde Diplomatique Brasil
A
televisão destaca a todo momento os crimes na cidade. Como se não
houvesse nada mais importante para veicular sobre a nossa vida em
sociedade. Há programas especiais que noticiam e mesmo acompanham
perseguições policiais a suspeitos ou criminosos. Uma especial atenção
para os casos de crimes, perseguições e prisões. É a produção de um
imaginário de guerra, que coloca como inimigos não só os criminosos, mas
todos os atos e movimentos de protesto contra a ordem instituída. Na
figura do preso se criminalizam os negros e os pobres. Mas o mais
importante é que os crimes ocupam também os noticiários. Ocupam um lugar
central nas informações recebidas pelos cidadãos.
Com essas
informações criam-se o medo, a desconfiança, a contração do espaço
público, o reforço ao individualismo, a necessidade de proteção. A
população, assustada, aceita a militarização da gestão da segurança
pública, que é a substituição do controle democrático por regras de
ocupação militar, chegando mesmo, em alguns casos, em algumas regiões,
ao toque de recolher.
As classes mais abastadas se fecham em
condomínios e shoppings, contratam seguranças privadas, e para as áreas
mais críticas da cidade são tomadas medidas radicais pelo poder público,
como a ocupação militar de favelas nos morros do Rio de Janeiro. Em
nome da segurança, do combate ao crime, a aceitação da arbitrariedade.
À
sombra do Estado, ou mesmo dentro do aparato policial, formam-se
milícias e grupos de extermínio. O cenário construído, que justifica as
arbitrariedades, é de guerra, de controle do território.
É um
retrocesso enorme em termos democráticos, de qualidade de vida, das
liberdades, dos direitos civis e políticos. Substituímos a negociação
democrática dos conflitos de interesses pelo uso arbitrário da força.
É
preciso desmontar essa narrativa. Não queremos regimes autoritários,
não estamos em guerra, nossos maiores problemas não são os crimes, é a
desigualdade que se expressa em nossas cidades de maneira gritante. Sem
uma melhor redistribuição das riquezas, sem assegurar o direito à cidade
para todos os seus moradores, vivendo a exclusão e a pobreza, os amplos
setores empobrecidos ficam condenados a partilhar as migalhas. E isso
gera conflitos. A pressão é pela democratização da política, para que as
maiorias possam disputar os governos e os recursos.
A capacidade
de pressão da sociedade para se opor à militarização da gestão da
segurança pública é baixa. Até porque parte da opinião pública é a
favor. E o que vemos é uma crescente tolerância com o avanço das
arbitrariedades que comprometem a democracia e o estado de direito.
Foi
muito débil a reação da sociedade civil às chacinas ocorridas no ano
passado em São Paulo. Morreram 1.368 pessoas a tiros, em muitos casos
mortas por policiais. A cidade está assustada. A narrativa que as
explica limita o foco ao imediato, ao cotidiano, não pensa esses
acontecimentos num quadro maior, em que eles façam parte e ganhem
sentido.
“A compreensão coletiva dos conflitos sociais ficou cada
vez mais reduzida à esfera cotidiana imediata, e os alvos das
atividades de manutenção da ordem pública tornaram-se cada vez mais
territorializados”, diz em seu artigo Luiz Antonio Machado (pág. 6).
Ao
tornar a violência criminal uma ameaça à continuidade das rotinas
cotidianas, a mídia conservadora e os governos estaduais propõem a
ocupação militar e a “pacificação” como soluções.
Há um
sentimento generalizado de insegurança, que é crescente. E esse
sentimento respalda atores políticos que promovem um retrocesso nas
políticas de segurança pública de décadas, voltam políticas repressivas e
de controle, a violação de direitos, os grupos de extermínio, a
execução sumária de suspeitos pela polícia. A isso se soma o
envolvimento de agentes da polícia com o narcotráfico, em muitos casos
passando a defender interesses comuns.
A resposta do governo é
mais repressão, ocupação militar de territórios, arbitrária imposição de
regras de convivência nos territórios ocupados. Não interessa se os
interesses da especulação imobiliária se aproveitam dessas intervenções
ou se apoiam nelas. Não interessa a questão da defesa dos direitos. A
“pacificação” serve para preparar a região para o advento da Copa e das
Olimpíadas, e serve aos interesses do capital imobiliário.
Num
clima como esse, de militarização da gestão pública, começam a surgir
aberrações, como desdobramentos dessa cultura do controle. Por exemplo, a
autorização legal, em São Paulo, para internar viciados em crack contra
a vontade. Uma internação em instalações que sedam com drogas seus
internados, internação que não tem data para terminar...
É uma
discussão ampla e complexa que contrapõe liberdade e democracia a
militarização e segurança. Não é só sobre o comportamento da polícia ou
as políticas de Estado. É também sobre quanto nossas sociedades estão
dispostas a se sujeitar a governos militarizados em nome da segurança.
Mas essa discussão nós não vamos encontrar na TV.
*Silvio Caccia Bava - Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário