Se o futebol teve um herói de esquerda, esse cara foi o
Afonsinho. Personagem carismático, destemido, engajado, por vezes quase
quixotesco, o rebelde meia do Botafogo ocupou um lugar muito especial no
imaginário coletivo do Brasil dos anos 70, um país ansioso por
transformações sociais e em busca da tão sonhada abertura política. Ele
foi o primeiro líder profissional das estrelas dos gramados a lutar pelo
seus direitos, uma luta pela qual pagou um preço caro, mas que, como
ele mesmo não se cansa da dizer, valeu a pena.
Afonsinho dentro
de campo era um gênio, no toque de bola e no drible, fora dela o gênio
foi cassado, por suas escolhas não serem do agrado dos generais e dos
cartolas de então.
Infelizmente o meio campista nunca foi
convocado para a seleção Brasileira, o que se justifica pelo fato de
suas posturas serem de confronto ao regime militar e a estrutura do
futebol nas décadas de 70 e 80 do século XX.
Afonso Celso
Garcia Reis, jogador, médico, musicista, boêmio, viveu até sua
adolescência em Jaú, cidade do interior de São Paulo. No início da
década de 60 ingressou nas divisões de base do XV de Jaú e em seguida,
foi jogar no Botafogo Carioca.
O Botafogo, que ele tanto amou,
não foi capaz de retribuir tal sentimento. Nos anos 70, nem mesmo o
futebol escapou da ditadura militar. Eram os tempos dos campeonatos
inchados para atender aos interesses de "integração nacional". Torneios
que, no final daquela década, chegaram a ter quase cem clubes. Aonde a
Arena vai mal, põe um time no campeonato nacional. Aonde a Arena vai
bem, põe um também, era o lema da CBD. Por alguma razão insondável, os
militares não gostam de barba e cabelo comprido. Afonsinho sabia disso,
claro. Mas, como não jogava para um regimento e sim para um time de
futebol, achou que poderia cultivar tranqüilamente seus longos cabelos e
uma barba de fazer inveja a qualquer companheiro da época. Ledo engano.
Barrado no Botafogo em 1971, até de treinar, por se recusar a obedecer
as ordens dos dirigentes do clube que o obrigavam a cortar o cabelo e a
barba, impondo através desta medida, a cultura autoritária e repressora
dos ditadores. No Brasil, cabelos e barba comprida, em meado da década
de 70, era layout irreverente. Usuários eram confundidos como
subversivos ou fora da lei.
Os conservadores dirigentes do
clube acreditavam que ficariam mal com o governo se mantivessem no time
aquele ameaçador barba ruiva, por maior que fosse o seu talento. Além
disso, crime dos crimes, Afonsinho era letrado. Pior ainda, politizado,
diferentemente da maioria dos jogadores monossilábicos, era líder,
inteligente, combativo e suas entrevistas eram marcadas por posições
firmes. Cursando medicina na faculdade, o articulado barbudo fez
amizades com músicos, artistas e intelectuais e passou a liderar
movimentos estudantis no campus. Não por acaso, o craque foi eternizado
numa canção de Gilberto Gil, "meio-de-campo" cantada pela saudosa Elis
Regina ("Prezado amigo Afonsinho; eu continuo aqui mesmo; aperfeiçoando o imperfeito; dando tempo, dando jeito")
e virou filme pelas mãos de Osvaldo Caldeira. O documentário Passe
Livre foi considerado importantíssimo na consolidação dos circuitos
alternativos de cinema no Brasil.
A atitude engajada e as "más
companhias" acabaram barrando Afonsinho no Botafogo. Para piorar, além
de não aproveitar o jogador (sem o jogador, o Botafogo perdia muito da
inteligência de seu meio-de-campo. Afonsinho antevia a jogada, mal
recebia o passe já acionava rapidamente um companheiro de ataque,
diferente de vários meias que tocavam a bola de ladinho, jogava em
profundidade e tinha uma belo arremate de meia distância), os cartolas
se recusavam a negociá-lo.
Foi quando ele decidiu recorrer à
Justiça, algo que os jogadores da época não conheciam nem de nome. Numa
decisão surpreendente, o TJD concedeu passe livre a Afonsinho,
transformando-o no primeiro jogador alforriado do futebol brasileiro.
Durante a luta judicial, jogou pelo Olaria, depois de um ano de luta na
justiça, recebeu o direito ao passe livre para jogar onde quisesse. A
vitória de Afonsinho na Justiça Desportiva nos Anos 70, foi a vitória
pelo direito ao trabalho e por liberdade de expressão e de organização.
Esta opção, fez com que a ditadura o perseguisse, sendo fichado no SNI
(Serviço Nacional de Informações), como subversivo e comunista. E mais
que isto, em um período de terror e do cala boca, questionar o sistema
futebolístico de então, era bater de frente com os militares. No entanto
nada o impediu de continuar lutando por justiça e democracia.
As pressões do governo militar impediram que ele obtivesse um bom
contrato. Ainda assim, ele que havia jogado com Garrincha no Botafogo
foi jogar no Santos de Pelé antes de perambular por vários clubes como:
Vasco, Flamengo, Atlético Mineiro, voltou ao XV de Jaú e encerrou a
carreira em 1982, aos 35 anos de idade, no clube que por pouco não o
lançou, o Fluminense.
Como os bons lutadores são aqueles que
continuam até o fim, Afonsinho jamais deixou de se empenhar pelas causas
sociais. Hoje exerce a profissão para a qual se formou. Depois de ver e
ouvir tanta sandice no futebol, foi trabalhar como médico-psiquiatra do
Instituto Pinel, onde realiza um trabalho de esporte, recreação e lazer
como complemento do tratamento psiquiátrico, visando a combater a
estigmatização dos deficientes mentais. Quem conviveu com tantos
cartolas deve tirar isso de letra...
Além disso, o ainda
barbudo, mas agora com cabelos ralos e grisalhos, comanda um projeto que
promove a assistência a crianças carentes através do futebol. A
escolinha do Afonsinho fica atualmente na escola Tia Ciata, entre o
Terreirão do Samba e o edifício Balança Mas Não Cai. Ao seu lado no
projeto, sugestivamente batizado de Ex-Cola, estão os antigos
companheiros de Botafogo Nei Conceição e Orlando Vovô.
Muita
gente esteve envolvida com a Ditadura, muita gente foi vítima da
Ditadura, mas só um brasileiro venceu a Ditadura e este homem foi,
Afonsinho.
Como o Navegante Negro do Aldir Blanc, aquele que
tinha por monumento as pedras pisadas do cais, Afonsinho não colheu
todas as glórias que um craque como ele poderia colher. Mas obteve uma
glória que poucos jogadores obtiveram na carreira: o respeito como
cidadão e líder. Em meio a tantos jogadores que se calaram, Afonsinho
teve a coragem de lutar, ainda mais... naquela época.
Por: Plínio Sgarbi
Fonte: arquivos do Jornal do Brasil
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