A Paz Interior Brota da Ausência de Ruído
Carlos Cardoso Aveline, no Filosofia Esotérica
Os sábios pitagóricos diziam que o universo é musical. De fato, cada
som e cada silêncio parecem ter um efeito especial sobre o ser humano.
Seu significado específico pode ser libertador ou não, trazendo
alívio, paz, serenidade, ou talvez inquietação. Por isso o excesso de
ruídos ― a moderna poluição sonora ― está longe de ser um problema sem
importância.
Sabe-se, por exemplo, que o lixo é apenas uma matéria-prima
potencialmente útil, colocada em lugar errado. Do mesmo modo, o barulho é
um som, em si mesmo inofensivo, que evoca fragmentação e desarmonia
porque foi emitido no momento, no tom e no volume errados.
Os sons da natureza são, geralmente, musicais. É certo que às vezes ―
como durante uma tempestade ― podem parecer terríveis para quem não os
entende. Um cachorro doméstico, por exemplo, sempre irá para debaixo da
cama, assustado, ao ouvir trovões. Mas, no conjunto, do ponto de vista
sonoro, a natureza é silenciosa e harmônica. Essa percepção se reforça
quando a comparamos a uma cidade moderna. Basta imaginar, por um
momento, o ruído das ondas do mar batendo numa praia deserta, o canto
dos pássaros no alto das árvores, o barulho do vento provocando o
farfalhar das folhas, e de outro lado o buzinar dos veículos, o ronco
dos motores e o ruído das sirenes. Mesmo nossas paisagens rurais são
cortadas atualmente pelo ronco de tratores e moto-serras. O ruído ameaça
não só o silêncio e a musicalidade presentes na natureza, mas também a
saúde do ser humano.
A surdez física não é o único resultado do excesso de barulho.
Submetido à poluição sonora, o cidadão apresenta uma variedade de
sintomas. O sistema nervoso periférico sofre, e provoca vasoconstrição;
os vasos sanguíneos se comprimem. O batimento cardíaco fica alterado.
As pupilas se dilatam. Quando o problema é constante, a perda de audição
aparece como uma defesa do organismo. O organismo surdo se fecha para o
meio ambiente: ele declara uma paz interior unilateral, cujo preço é a
incomunicação definitiva. Quem hoje ouve “rock” a todo volume, em
alguns anos poderá não ouvir, nem mesmo querendo, os acordes mais suaves
da música clássica.
O ruído excessivo é uma espécie de exteriorização forçada da
consciência, e pode ser buscado como meio para evitar o confronto com a
ansiedade. É o caso de certo tipo de música. O barulho também pode ser
imposto ao homem desde fora, transformando-o em vítima de um processo de
contaminação ambiental.
Todo ser humano precisa do silêncio para viver bem, e é na ausência
de barulho que ocorrem e são compreendidas as coisas mais importantes.“O
silêncio não deve ser buscado como uma maneira de evitar a vida”,
escreve o religioso Nicolas Caballero, das Filipinas. “Não pode ser
apenas um refúgio da agitação, ou do que nós chamamos de estar cansado
da vida. O silêncio é o contexto em que nós reconstruímos a
interioridade e a exterioridade.” Para Caballero, devemos aprender a
produzir silêncio em nossas vidas. [1]
O barulho e a desarmonia, de um lado, e o silêncio e o equilíbrio, de
outro, podem ocorrer simultaneamente em três níveis de consciência:
físico, emocional e mental. Estas três instâncias formam uma tela vital
única, cuja qualidade devemos aumentar de modo gradativo e constante.
“O ruído é uma desinteriorização que me separa das coisas ou das
pessoas”, alerta Caballero. Ele faz com que se distorça a percepção da
realidade. Investigando a fonte do ruído na mente e na vida humana, o
autor filipino chega ao que se chama de “falsa espiritualidade”: o
problema da pessoa não-religiosa é, essencialmente, um problema de
barulho. A pessoa barulhenta é egocêntrica, mesmo que aparentemente
religiosa. O importante, neste caso, não é o mundo divino, mas suas
idéias sobre ele, porque o egocêntrico só consegue enxergar a si mesmo.
Esse egoísmo é a fonte do barulho, isto é, daquela aparente ausência
de uma musicalidade natural que deve expressar-se livremente em cada
processo vivo.
O ser egocêntrico é incapaz de ouvir, mas quer ser escutado; e para
isso ele faz barulho, físico e emocional. Alguém escreveu que a
capacidade de suportar ruídos está na razão inversa da inteligência das
pessoas. A afirmativa é verdadeira, mas não deve ser superestimada.
Os idosos, por exemplo, não gostam de barulho, independentemente do seu
grau maior ou menor de inteligência. No entanto, é verdade que um idoso
quase sempre tem uma certa sabedoria interior.
Através do cultivo do silêncio, a pessoa desenvolve o desapego em
relação ao que parece agradável ou desagradável. Inversamente, o
desapego torna possível ter paz e silêncio interiores. O tema é vasto e
complexo: a produção de silêncio e paz no mundo psicológico é um
processo que precisa ser estudado, diz Caballero.
O silêncio pode mostrar-se como um vazio, ou como uma plenitude. Nos
dois casos, está ligado à observação do que é real, a partir de uma
consciência que não se abala com os altos e baixos da vida cotidiana.
O significado da existência e o caminho do auto-aperfeiçoamento
acelerado são compreendidos em silêncio, com o corpo físico, a percepção
mental e o centro emocional serenos, se não imóveis.
A luta e a alternância entre o silêncio ― onde se expressam os
significados interiores ― e o barulho (que provoca confusão mental) se
desdobra em todos os níveis e momentos do cotidiano. Inclusive
sociologicamente.
Os veículos automotores, a construção civil, os aeroportos, os bares
noturnas e as grandes indústrias são algumas das principais fontes de
poluição sonora em nossas cidades. O processo de conscientização em
relação ao problema é complexo e não começou há pouco.
“A juventude paga para se ensurdecer nas discotecas”, disse, anos atrás, um técnico encarregado de combater o ruído. [2]
Já em 9 de maio de 1939 era publicado no Rio de Janeiro um
decreto-lei autorizando o prefeito da então capital brasileira “a adotar
medidas necessárias para coibir o excesso de ruídos urbanos”. [3]
As infrações seriam punidas com multas mínimas de 100 mil réis,
dobradas na reincidência. As aeronaves também foram proibidas de passar
pela cidade a menos de 200 metros de altitude, exceto quando em manobra
de pouso ou decolagem.
De certo modo, a Constituição Federal de 1988 contempla o problema da
poluição sonora ao estabelecer em seu artigo 5º, parágrafo 10, que é
“inviolável a intimidade (...) das pessoas, assegurando o direito de
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação.” Já o artigo 225 da Constituição afirma que “todos têm
direito ao ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum ao povo
e essencial à sadia qualidade de vida”. O parágrafo 5º do mesmo
artigo estabelece o poder e o dever do Poder Público de evitar toda
ameaça “à vida, à qualidade de vida e ao meio ambiente”.
No início dos anos 90, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA)
aprovou diversas resoluções específicas de combate à poluição sonora.
Uma delas, a Resolução nº 001, de 8 de março de 1990, estabeleceu
limites para ruídos de origem industrial, comercial ou de atividades
sociais e recreativas, inclusive as de propaganda política.[4] O objetivo expresso da resolução é defender a saúde pública e o sossego da pessoa humana.
As cidades dos países mais ricos controlam com rigor crescente as
fontes de poluição sonora. Seus carros e máquinas silenciosos são um
exemplo disso. No Brasil, o trânsito se torna gradualmente mais
silencioso.
Para alguns, o ruído é sinônimo de intensidade vital. Certas motos,
por exemplo, são intencionalmente adaptadas para causar mais barulho.
Há uma explicação para isso: uma característica da mente barulhenta é a
sua necessidade de chamar a atenção dos outros, ainda que perturbando o
sossego público. Tais exageros são relativamente raros. Mesmo assim, a
poluição sonora causa níveis cada vez maiores de preocupação pública.
Os decibelímetros ― medidores de ruído ― vão deixando de ser raridades, e
tornam-se instrumentos úteis na luta de moradores incomodados por
fábricas barulhentas, ou de promotores públicos que defendem o sossego
de um bairro.
Uma atitude mais vigilante tende a espalhar-se ― e é indispensável
que isso ocorra; mas ela não será suficiente. É recomendável atacar
também a causa interna da poluição sonora. Esta causa está na mente
humana, e escapa à mera análise ecológica, econômica ou legal da
questão. Por falta de autoconhecimento, o ser humano sente necessidade
de fugir do seu próprio ruído interior e psicológico. Para isso,
provoca barulhos externos que distraiam sua atenção para o mundo
externo. É o caso da dependência psicológica da televisão. Para não
ver suas próprias angústias e incertezas, rodeia-se de sons ( ou imagens
) que o prendem momentaneamente a este ou aquele aspecto do mundo
exterior. A verdadeira solução não é esta.
O primeiro passo é aprender a calar por completo e então ouvir a voz
da consciência. Quando a voz do silêncio pode ser ouvida, a paz ilumina
os diferentes aspectos do mundo. A fonte da felicidade está, de um
lado em obedecer à alma presente em nosso interior, e, de outro lado,
em perceber a alma do universo. Amúsica das esferas, de que falavam os pitagóricos, é escutada quando a nossa vida física, emocional e mental está em consonância
com o grande processo vital do planeta e do cosmo. “Ora, direis, ouvir
estrelas” ― escreveu Olavo Bilac, antecipando o desprezo dos céticos.
E, no entanto, sabemos que é possível ouvir as estrelas, e que elas
não necessitam de palavras para falar. Basta que haja silêncio mental
da parte de quem escuta.
No caminho do auto-conhecimento, a ausência de ruídos constitui, pois, uma condição essencial. Alfred de Vigny afirmou:
“Só o silêncio é grande: todo o resto é fraqueza”.
Helena P. Blavatsky pensa de modo semelhante. Ao abordar o estudo e a percepção da sabedoria divina, ela escreveu:
“Em suas horas de meditação silenciosa, o estudante descobrirá que
há um espaço de silêncio dentro de si, no qual ele pode encontrar um
refúgio e descansar dos pensamentos e desejos, do torvelinho dos
sentidos e das ilusões da mente. Mergulhando sua consciência no nível
profundo do seu coração, ele pode alcançar este lugar ― inicialmente só
quando está sozinho, em silêncio e na escuridão. Mas quando a
necessidade de silêncio crescer o suficiente, ele irá buscá-lo mesmo no
meio da luta com o eu inferior, e o encontrará. No entanto, ele não
deve abandonar seu eu externo, nem seu corpo; ele deve
aprender a retirar-se para esta fortaleza quando a batalha se torna
feroz, mas isso deve ser feito sem que ele perca a visão da batalha; e
sem permitir-se imaginar que por causa disso ele obteve a vitória. A
vitória só será conquistada quando tudo for silêncio, tanto dentro como
fora da fortaleza interior.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário