Entrevista
com MILTON SANTOS na revista Caros Amigos em 1998
TERRITÓRIO
Como geógrafo, creio que o
território brasileiro é o melhor observatório do que está passando no país. Se
olho o território brasileiro hoje, vejo primeiro que é um território nacional
mas da economia internacional. Quer dizer, o esforço de quem manda, no sentido de
moldar o território — porque o território vai sendo sempre moldado por quem
manda —, é no sentido de favorecer o trabalho dos atores da economia
internacional.
Não são apenas as multinacionais
estrangeiras, mas todas as grandes firmas estrangeiras ou brasileiras, são elas
que trazem para o território uma lógica globalizante.
Na realidade, uma lógica
globalitária, há mais do que globalização, há globaritarismo. Então, temos o
território brasileiro trazendo esses nexos, que são cegos, e que criam uma
ordem para essas grandes empresas, trazendo desordem para tudo o mais. Desordem
criada para as empresas não envolvidas, que são atingidas por ela, por essa
entropia negativa dentro do território, que alcança toda a sociedade.
Então, o território revela também
a incapacidade de governo, quer dizer, a não-governabilidade do país, porque o
Brasil é um país não-governado.
Ao mesmo tempo em que o
território revela que o governo, a política, se faz pelas grandes empresas. São
as grandes empresas que fazem a política. Isso se vê no uso do território
brasileiro.
AGRICULTURA
É um novo tipo de feudalismo, e
de militarização do território ao mesmo tempo.
Porque tem de obedecer, tem de
fazer aquilo que manda o chamado mercado global.
Vejam, por exemplo, as áreas
agrícolas mais modernas, como o Estado de São Paulo, que funcionam segundo um
regime militar, no sentido de ter de fazer aquilo que lhes é ordenado — ou dá
ou desce, ordem unida —, seguindo o que é necessitado por essa ordem global.
Digamos que a globalização dê
n’água, como vai dar, como o interior de São Paulo vai reagir? Quais seriam os
cenários? Uma enorme área vendendo suco de laranja, o que acontecerá?
Uma monocultura ligada a uma
ordem global que não existia antes, muito mais constrangedora do que as ordens
internacionais anteriores.
CONSUMO
Vamos começar do começo. Quando
eu era maduro... a gente lia muitas coisas da literatura marxista soviética —
porque era mais barata, não é? —, então tinha o bem e o erro, a verdade e a
mentira. A verdade e a ideologia. Mas a ideologia também é
"verdadeira", ela produz coisas que existem, que são os objetos. Esse
é um primeiro ponto de partida. Um outro ponto de partida é o seguinte: a
produção de idéias precede a produção das coisas, hoje. Não era assim há
cinqüenta anos.
Com a cientifização da produção,
com a cientifização da técnica, tudo o que é produzido é precedido de uma
idéia... científica. É por isso que a publicidade também precede de produção
material. Quer dizer, antes de jogar um produto, faço a propaganda dele. O
remédio é um exemplo, 1 por cento de matéria, 99 por cento de propaganda. Então
tudo é feito assim, a produção da política também.
A política cientificamente feita,
como agora, é precedida pelos marqueteiros.
Então, tudo no mundo de hoje tem
essa produção ideológica, ou de idéias — para ser neutro — que precedem. Por
conseguinte, há um mercado de idéias que antecipa a produção de tudo, pelo
menos do que é hegemônico.
E o consumo é o grande portador
de tudo isso. Por isso, ele é o grande fundamen-talismo hoje. Não é o do
Khomehini o grande fundamentalismo, é do consumo, porque é portador do meu
impulso para esta forma de vida, que acaba me transformando numa coisa, num
objeto.
LIDERANÇA
Não há uma escolha nacional do
líder nacional. Há uma escolha internacional, global, do líder nacional. Acho
que é esse o jogo, e essa escolha é em grande parte feita entre pessoas que um
dia foram insuspeitas.
GLOBALIZAÇÃO
Acho que vai haver, no caso do
Brasil, primeiro, uma outra federação. Vamos produzir uma outra federação.
Daqui a pouco vai haver uma reforma na Constituição, feita por cima, mas daqui
a pouco vai haver outra, feita por baixo, porque essa por cima não vai
funcionar. Isso vai acontecer em alguns ou em todos os países. Aí, depois que
fizermos a nossa federação por baixo, haverá a produção da globalização por
baixo também, com novas instituições internacionais.
ENSINO
O ensino público é indispensável,
e com a globalização torna-se mais indispensável para assegurar a possibilidade
de pensar livremente, e de dizer livremente.
Não basta pensar, tem de poder
dizer.
Por conseguinte, se o ensino
ficar atrelado ao mercado, ou à técnica, ele será cada vez mais canalizado para
a subserviência, sobretudo porque a ciência tende cada dia a ficar mais longe
da verdade.
Porque a ciência é feita para
responder à demanda técnica e do mercado. Por conseguinte, ela estreita o seu
objetivo.
Só o ensino público pode
restaurar isso. Dito isso, as universidades públicas teriam de ser um pouquinho
mais públicas, na medida em que elas não estão abertas. O número de matrículas
diminui proporcionalmente todos os anos. Em São Paulo, a evolução das vagas no
ensino público é diminuta, e a expansão é do ensino privado. Então, a
universidade pública, para aumentar, digamos assim, sua legitimidade, tem de se
tornar um pouco mais pública. Tanto na aceitação de alunos como na escolha dos
professores.
UNIVERSIDADE
A enorme dificuldade é ser
intelectual neste fim de século.
Uma enorme dificuldade, que na
verdade está incluída nessa globalização, porque a universidade é chamada a ser
porta-voz.
Quer dizer, os apelos todos da
globalização, aumentando os contatos entre as universidades e indicando as
universidades que são faróis, eles acabam corrompendo as universidades
subordinadas, como a USP e as outras, do Terceiro Mundo, que não são
universidades portadoras de teorias do mundo.
CIÊNCIA
A descoberta gratuita ou de um
futuro diferente daquilo que já está traçado — por conseguinte, não é mais um
futuro, porque já está traçado, não é isso? — não está acontecendo. Acho que
esse é o problema da ciência hoje.
Quer dizer, de um lado as
ciências humanas são comandadas pela moda, então a gente faz aquilo que está na
moda, que está na mídia. Dá-se mais valor à moda do que ao modo porque a moda
assegura a promoção, o status, a moda vem das universidades hegemônicas, que
sabem por que estão impondo as modas.
Então você passa quinze anos
estudando dependência, passa quinze anos estudando setor informal... veja,
nestes últimos quarenta anos os temas centrais foram dois ou três. Que não
levaram ao progresso do conhecimento, levaram para trás.
E nas ciências exatas e nas
outras é o mercado que escolhe o que fazer. Com a globalização, a escolha é
cada vez mais estreita.
Por conseguinte, o campo de
pensamento se afunila e a distância em relação à busca da verdade
aumenta.
E hoje há uma tecnização da
pesquisa, quer dizer, há uma necessidade de dinheiro, a maior parte das
pesquisas precisa de dinheiro, isso complica, porque o dinheiro é mais
freqüentemente dado para os centros de pesquisa que aceitam essa
instrumentalização.
E pensar livremente se dá a
partir de um certo estágio, uma certa experiência ou um certo gênio — gênio em
qualquer idade —, o que significa um número menor de pessoas, que tem público
por isso mesmo menor. E o público vai exatamente para o outro lado. A universidade
pública seria o lugar do intelectual público. Mas hoje a possibilidade de ser
intelectual público é cada vez mais limitada, por essas condições todas sobre
as quais falamos aqui.
http://www.tigweb.org/youth-media/panorama/article.html?ContentID=18945
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