terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

ENSAIO SOBRE O TRIO ELÉTRICO

texto de PAULO COSTA LIMA
Pára o carro Olegário!! Não tá vendo que tá andando de banda? Mas Seu Osmar, o carro já quebrou há muito tempo, é o povo que está empurrando!
O ensaio, como tradição literária, é esforço interpretativo. Mas o que dizer do trio? Tanta espetacularidade requer justificativa? Gostaria de fazer coincidir forma e conteúdo: um breve discurso com três pontas e uma síntese.
A primeira ponta é o frevo. Há uma ligação de umbigo entre trio elétrico e frevo. Dodô e Osmar tiveram a idéia de colocar a tal fubica na rua em 1951. Poucos dias antes, passara por Salvador o Clube Carnavalesco Vassourinhas de Recife, em direção ao Rio.
O frevo traz marcas afro-brasileiras indeléveis. Não tem nada de africano na melodia ou na harmonia, poderia ser tocado até como minueto! Mas os ritmos!!!
As idéias rítmicas impingem aos compassos da Europa acentos e tensões que são tipicamente brasileiros. Imprescindível para o espetáculo. Imagine se funcionaria com valsa? E a malandragem?
Mas aí surge um fino detalhe. E essa é a segunda ponta do argumento.
O carnaval que predominava nas ruas de Salvador até então era o do corso e dos préstitos — o desfile das beldades de elite com fantasias e acenos do alto de carros especialmente preparados para a ocasião.Consta que até ópera italiana rolou no Carnaval. O povo ficava na Barroquinha e na Baixa dos Sapateiros em cordões e afoxés.
Portanto, a presença da fubica, tocando frevo, era uma subversão enorme. E o cerne da subversão era que o frevo colocava como centro das atenções o próprio povo dançando. O corpo que todos têm.
Quem já assistiu à passagem de um trio elétrico trazendo em torno de si todo o repertório humano de um bairro popular saberá do que estou falando. Encantamento total na junção entre música e dança.
O calor e a euforia são tão grandes que alguns tiram a camisa pra rodar por cima da cabeça. Tem casais abraçados, crianças montadas no pescoço dos pais, gente de meia idade, mulheres em grupos, vendedores ambulantes vendendo e dançando, disputa pra ver quem faz a melhor pirueta, e aquele empurrão no meio do bolo… (era assim)
Os ritmos oferecem situações de equilíbrio e desequilíbrio, convocam o gingado — ‘só não vai quem já morreu’.
Portanto, naquela virada de 1951, algo mudava na Bahia do governador Octávio Mangabeira, figura ímpar de nossa vida política. Um ‘momento histórico’ proporcionado pela bolha democrática entre o Estado Novo e a ditadura de 64?
No modelo que daí surge, o espaço público vai ficar mais público. E essa energia vai favorecer uma qualidade musical diferenciada, embalada pelo virtuosismo do frevo, e pela “livre” aventura de botar uma música na boca do povo. Caetano, Tuzé, Moraes, Armandinho… E ecos mais recentes em Brown, Gerônimo e Lelis.
A terceira ponta relembra Manoel José de Carvalho. Para ele, as dinâmicas de rua são construções sociais com enorme peso histórico. Salvador teve 300 anos anteriores de cortejo de rua — com procissões e festas de paróquia.
O aparecimento do trio acaba mobilizando essa memória grupal histórica pela topografia da cidade. O trio se encaixa na dinâmica ancestral construída em torno do andor das procissões. É como se tudo estivesse pronto aguardando sua chegada.
Nos anos seguintes vai ocorrer um processo espetacular (e muito original) de design para a festa, da carroceria de um caminhão até os nossos fulgurantes monstrengos de hoje — grandes palcos ambulantes.
Síntese: Hoje estamos em outro planeta: cordas, cachês e abadás. E mais: camarotes e celebridades. Ganhou-se em gestão, profissionalização e expansão. Perdemos em participação, diversidade e qualidade musical.
As músicas que ganham a mídia não ficam mais no ouvido durante anos, estão congeladas em sua funcionalidade do perímetro das cordas (raras exceções).
Será que o impulso democrático dos últimos anos, essa bolha que esperamos definitiva, vai ter a força e o discernimento para fazer brotar um outro modelo, com novos (e velhos) valores musicais?
Mais do que questão, uma demanda: multiplicar os ganhos (socializando-os) e potencializar a qualidade/diversidade cultural.
*Paulo Costa Lima – Compositor, pesquisador-CNPq, professor da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, membro da Academia de Letras da Bahia

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