sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Para que ainda precisamos de super-heróis

Por  Carol Almeida

Está sendo uma intensa - ora excitante, ora frustrante - temporada de super-heróis no cinema. Só este ano tivemos X-Men Primeira Classe, Thor, Capitão América e, a partir da próxima semana, Lanterna Verde. E tudo tende a ficar ainda mais super-heróico em 2012 com o novo Homem Aranha interpretado por Andrew Garfield, um inédito Batman de Christopher Nolan e, claro, eles, Os Vingadores, sem falar na volta do Superman em 2013. Curioso mesmo não é essa renovada movimentação de indivíduos vestindo fantasias, mas sim entender que essas mesmas fantasias heróicas estão voltando a adquirir o sentido de resgate de autoestima que as fizeram nascer em primeiro lugar. A diferença é que agora essa carência afirmativa não surge apenas para suprir as demandas de um estado-nação em conflito armado, mas para responder a um mundo inteiro em sério e violento conflito de identidade.
De outra forma, não seria possível explicar por que 1) em meio a toda essa procura pela origem e reconstrução dos super-heróis no cinema, a editora Marvel tenha decidido colocar nos quadrinhos um novo Homem Aranha de descendência negra e hispânica, com grandes chances também de ser gay e, mais importante ainda, 2) por que houve uma grande reação negativa a esta última notícia e de que forma essa reação se manifestou. Em tempos calamitosos de "Orgulho Hétero", é bom tentar entender que hoje, mais do que procurar a quase retórica resposta de por que as pessoas ainda precisam de super-heróis, é necessário deliberar sobre para que elas precisam deles.
Sobre o contexto histórico do nascimento de Miles Morales, a nova versão de Peter Parker, vamos às minúcias do caso: existem hoje, nos Estados Unidos, duas séries paralelas com o Homem Aranha. A chamada série "mainstream" com o Peter Parker que todos conhecem, e a série batizada de Ultimate Fallout, que matou Parker recentemente e cuja quarta edição, publicada no último dia 3 de agosto, apresentou debaixo da máscara do aracnídeo esse jovem negro. Sete décadas antes dessa cena, o mercado editorial viveu a chamada Era de Ouro dos quadrinhos americanos, com o surgimento de super-heróis que erguiam com seu dedo mindinho o orgulho de ser americano em tempos de Segunda Guerra Mundial. E cerca de cinco décadas antes de Morales revelar seu rosto, veio a Era de Prata, período dos super-heróis de Stan Lee e sua geração, com personagens mais complexos e humanos (humanidade sempre associada à possibilidade do erro) tais como os X-Men e o próprio Homem Aranha, respostas sintonizadas com novas crises bélicas como a Guerra do Vietnã.
Tendo isso dito, há uma diferença clara entre a chamada Era de Ouro, a Era de Prata e a última folha virada do calendário. E isso diz respeito aos elementos clássicos da fundação de todo e qualquer super-herói: poder e diferença. No momento dourado dos quadrinhos americanos, estava clara a importância de ter em mãos o poder. Na prateada, era a diferença dos seres extraordinários que pesava mais na construção do personagem. Em todos os casos, esses dois elementos sempre estiveram presentes e relacionados. E nada disso mudou no que concerne a manutenção dos super-heróis ocidentais tal como os conhecemos. O que de fato mudou foi o (des)equilíbrio entre o poder e a diferença, particularmente pós-11 de Setembro, quando o dilema entre ser tolerante com os distintos ou ser igual aos intolerantes - embate este que é raiz nos conflitos da saga X-Men - se tornou pauta maior na esfera pública global.
Quando foi anunciada a origem étnica e possível orientação sexual do novo Homem Aranha, mais do que questionar a necessidade de se inventar um novo personagem para o herói (algo que não é exatamente inédito nos quadrinhos americanos), alguns fãs e "especialistas" espernearam cobras e lagartos alegando uma descaracterização do personagem. Vejamos: quem é o menino por trás do Homem Aranha? Um jovem que, como diria o ator Andrew Garfield na última San Diego Comic Con, não se sente confortável no corpo em que nasceu. E por corpo estamos falando de nosso espaço emocional dentro de uma estrutura social. Graças a esse desconforto e a um poder adquirido, o personagem usa do subterfúgio de um disfarce não exatamente para ser igual aos demais, mas para ser melhor, fazendo o bem sem olhar a quem. Portanto, faz todo sentido que ele seja negro, hispânico e gay. Aliás, sem querer ofender o carismático Peter Parker original, é uma pena que o Homem Aranha já não tenha nascido com todas essas peles. Porque entre a tensão política do poder e da diferença, existe essa nossa humana necessidade de pertencimento.
Os X-Men, tal como recentemente adaptados para o cinema, estão aí para falar disso. Não apenas o último filme X-Men Primeira Classe foi genial e inteligente na abordagem do assunto, como os dois primeiros longas adaptados dos mutantes, não coincidentemente dirigidos por um diretor assumidamente gay, Bryan Singer, deixaram claro que a construção de conflito partia da ideia de pertencimento. Duas cenas clássicas em X-Men 2 (2003) tratam do assunto com elegância. Em uma, Noturno pergunta a Mística, ambos seres azuis: "Por que não nos disfarçamos a toda hora? Para se parecer com todo mundo..." No que ela responde: "Porque não deveríamos precisar disso". Em outra, a mãe do ainda adolescente Bobby Drake (futuro Homem de Gelo) implora ao filho: "Querido, você já tentou... não ser um mutante?" Substitua a palavra "mutante" por "gay" e você terá um discurso ecoado em vários outros recintos familiares da vida real.
Enquanto isso, na Sala de Justiça da Liga mais famosa dos quadrinhos, em outubro do ano passado houve um chamado crossover dos heróis da DC Comics (Super-Homem, Batman, Lanterna Verde, entre outros) com uma série já popular no Oriente Médio chamada The 99. Esses 99 são super-heróis que nasceram em 99 distintos países, criados pelo kuaitiano Naif Al-Mutawa. São também assim numerosos porque baseados nos 99 atributos de Alá. Al-Mutawa faz questão de lembrar que seus personagens, homens e mulheres com várias origens e cores de peles, não deixam de ser um reflexo da gênese dos super-herois americanos, seres que reproduzem arquétipos bíblicos e, portanto, nascem da cultura religiosa em que cada um de seus autores estavam inseridos.
Em conversa que tive com Al-Mutawa em 2006, quando esses personagens começavam a ser criados, a pauta do pertencimento como elemento que dá liga às relações entre poder e diferença já estava muito clara em sua cabeça: "Apesar de os personagens serem super-heróis, há um sentimento distinto de que cada um deles poderia ser um de nós. Minha intenção é de que crianças no mundo inteiro - muçulmanas ou não - se identifiquem e emulem esses 99 atributos de Alá, como generosidade, sabedoria, compaixão, piedade, atributos que qualquer cultura teria orgulho de ter. A mídia ocidental está focada demais em associar o Islã à intolerância e à violência. Mas o fato é que associar a Al-Qaeda ao Islamismo seria o mesmo que associar o Nazismo ao Cristianismo".
Homem de negócios e artista, elogiado em entrevista coletiva pelo presidente Barack Obama, Al-Mutawa criou personagens com ética muçulmana em estética cristã. E os define como seres quem derrotam estereótipos e extremismos. Bem possível que Miles Morales se sentisse em casa.
Nos resta voltar à questão inicial: Para que precisamos dos super-heróis? A resposta vem de uma conclusão dos pesquisadores Ella Shohat e Robert Stam no livro Crítica da Imagem Eurocêntrica. Para eles, o pensamento que tenta legitimar a exclusão social - neste caso especificado no exemplo do racismo - "é tautológico e circular: somos poderosos porque estamos certos, e estamos certos porque somos poderosos". O que essa nova carência por heróis talvez tente dizer é: precisamos ser poderosos porque diferentes, mas definitivamente e historicamente não somos diferentes porque poderosos. Carecemos, pois, dos heróis que livrarão as pessoas de suas próprias identidades secretas. Desses heróis, cujo poder nasce do orgulho de suas diferenças, e não de suas igualdades há séculos privilegiadas, é que precisamos. Cada vez mais.

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