quarta-feira, 20 de junho de 2018

O duplo,

No filme Cisne Negro, a personagem Nina, vivida por Natalie Portman, é uma abnegada bailarina que, segundo o diretor artístico da companhia, possui disciplina e técnica, mas carece de emoção e intensidade dramática para encarar um papel mais denso. Mesmo assim, o diretor artístico se propõe a fazer uma montagem para "O Lago dos Cisnes" de Tchaikovsky, na qual a bailarina principal fará o papel de dois cisnes, um branco e outro negro.

A leitura de Vicent Cassel, na pele do diretor artístico, pretende encenar é a disparidade de impulsos e sentimentos que animam e inflamam o ser. Nina, a disciplinada bailarina, parece ter sérias dificuldades para externar seu "cisne negro"; paralelamente a personagem apresenta uma união sufocante, infantilizada, com sua mãe que a deixa em uma redoma de disciplina e determinação exasperante. Dentre várias bailarinas da companhia, o diretor a escolhe e começa a provocar, a incitar, o lado negro, a capacidade dramática que sai mediante tropeços e esgares da personagem, pois Nina almejava avidamente um papel principal, preparava-se para isso, mas soterrava sua emoção, como observa o diretor.

Durante o processo de ensaios e construção do papel, Nina passa a se defrontrar de modo quase alucinatório com aspectos do seu ser que a atormentavam e provocam mudanças em si e em sua relação com sua mãe. Chega a se ver duplicada, o que causa nela inequívoco sentimento de algo estranho, inquietante, sendo que seu duplo, ao encarnar o lado negro e sombrio, precisava ser vivenciado para quem Nina atingisse a intensidade dramática necessário ao papel do cisne negro.

A dócil Nina parece se defrontar com o que estava soterrado sob sua circunspecta dedicação ao balé vindo à tona o seu lado humano e sua sexualidade até então recalcada em seu psiquismo e oprimida por sua mãe.
(...)
O escritor Dostoiévski escreveu em 1846 uma novela intitulada O Duplo, na qual narra as desventuras de um austero funcionário público, o senhor Goliádkin, que inesperadamente vê o surgimento do seu duplo, outro senhor Goliádkin, o que traz pavor - a sensação de algo estranho, angustiante. Inicialmente este inusitado encontro é misto de estranhamento e curiosidade entre Goliádkin e seu duplo. O senhor Goliádkin, que se orgulhava de sua posição como funcionário público, conservava suas pequenas vilanias diárias sob a máscara da respeitabilidade em suas relações. Eis que aí surge o duplo do senhor Goliádkin e começa a tomar o lugar dele na repartição, e. suas relações etc. O duplo começa a expor o senhor Goliádkin e tomar sua posição na repartição, agindo de modo atroz e desleal, o que leva Goliádkin a ficar em frangalhos e indefeso à ação do seu duplo, que expunha o lado abjeto e mesquinho que estava velado sob a pusilânimidade do senhor Goliádkin que,  ao final, fica arruinado. Inúmeros Goliádkin e suas duplicatas hão de infestar repartições, solenidades e toda sorte de encontros sociais até o fim dos tempos".

Trechos do livro:
"Do Bunker Provinciano Ao Fabulário Tropical" 
de André Ribeiro Albuquerque.

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