A questão ideológica do Brasil contemporâneo
Embora
já surrada, a questão do "fim das ideologias", assim como do "fim da
história", reaparecem de tempos em tempos, abertamente ou de forma
subliminar.
Embora já surrada, a questão do “fim das ideologias”, assim como do “fim
da história”, reaparecem de tempos em tempos, abertamente ou de forma
subliminar. Trata-se de uma questão internacional, mas com contornos
específicos no Brasil.
Há, de certa forma, uma espécie de
“ideologia da não ideologia”, isto é, a tentativa permanente, aguçada em
períodos pré-eleitorais e eleitorais, dos setores liberais e
conservadores desqualificarem, por estratégias diversas, os
pressupostos, objetivos e formas de atuação dos grupos à esquerda.
Mesmo
que os aspectos concretos quanto à forma de atuar dos grupos sociais – à
esquerda, ao centro e à direita no espectro – dependa de um conjunto de
circunstâncias históricas, tais como o contexto internacional, a
correlação de forças numa dada sociedade, o grau de organização e
mobilização das forças sociais, o papel das instituições políticas, os
padrões do modelo de acumulação, entre outras variáveis, há elementos
essencialmente definidores do significado de esquerda e direita.
Vejamos,
de forma panorâmica e sem a pretensão de esgotar suas características,
alguns desses elementos essenciais quanto à atualidade da esquerda.
Primariamente,
diz respeito ao tema da igualdade: política e social. O pensamento à
esquerda – concretizado em governos – tem como objetivo central a
diminuição das desigualdades e, num plano de longo prazo, sua
eliminação. Em termos da agenda governamental, esse pressuposto implica:
ampliação do gasto social (medido em relação ao PIB); busca pela
universalização de direitos, mas contemporaneamente combinada com
focalização aos grupos mais vulneráveis; descrença no “mercado livre”,
panaceia vendida pelo liberalismo, uma vez que se apoia o direcionamento
dos agentes econômicos, e sobretudo o reconhecimento das assimetrias
entre os detentores do capital e da força de trabalho, reconhecimento
que se transforma em políticas de apoio aos trabalhadores via políticas
públicas; apoio às formas de participação popular, como conferências
nacionais, audiências públicas, entre diversas outras; como decorrência,
o estímulo ao chamado “controle social”, em que cidadãos organizados em
suas comunidades são partícipes ativos dos processos de implementação e
monitoramento de políticas públicas, caso do exitoso Programa Bolsa
Família; a questão crucial da aceitação dos conflitos como legítimos,
cuja consequência é a negociação e não a repressão policial. Por fim, do
ponto de vista das relações internacionais, a busca por autonomia
perante as potências mundiais e suas instituições, em que o tema da
soberania ganha relevo, e conduz, claramente, a uma visão de mundo à
esquerda, em clara contraposição com a chamada direita, tradicionalmente
associada às potências hegemônicas.
Em claríssimo contraste, quais são os pressupostos da direita?
Seu
pressuposto fundamental é a ordem, resultante da rejeição e aversão aos
conflitos, sobretudo de classe, que permanecem revestidos
majoritariamente como “conflito distributivo”. Daí o discurso clássico
da direita ter na violência do Estado, por meio do “endurecimento das
penas”, da brutalidade policial, da “criminalização” dos movimentos
sociais, entre tantas outras formas, uma de suas características
marcantes. Tal violência, destituída de controles democráticos, volta-se
à proteção da propriedade e à “harmonia entre as classes” (mesmo que se
negue sua existência).
Afinal, o pressuposto do pensamento
liberal/conservador é justamente a “ideologia do mérito”, revestida de
“meritocracia”, em que os indivíduos – independentemente de suas
condições coletivas históricas – devem competir, sobressaindo-se os
“melhores”. Daí o clássico mote do jornal O Estado de S. Paulo,
de certa forma compartilhado por toda a grande mídia, de que as elites
são constituídas pelos “melhores e mais capazes, venham de onde vierem”.
Do ponto de vista internacional, a aceitação da “ordem mundial” tal
como dada e ao papel subalterno conferido ao Brasil pela “divisão
internacional do trabalho” fez e faz parte do conservadorismo liberal
encarnado na perspectiva da direita.
Keynes, mesmo não sendo um
intelectual de esquerda, já havia chamado a atenção, num profético
artigo publicado em 1926, intitulado “The end of laissez faire”, a
respeito dos efeitos nocivos da competição sem regras e da falácia da
“mão invisível do mercado”, ambientes em que a ideologia do mérito
prospera. Trata-se de pressupostos intrínsecos ao pensamento conservador
e liberal, que conflui vigorosamente à direita no espectro.
Albert
Hirschman, num primoroso livro sobre o pensamento conservador e liberal
– encarnado na direita não nazista –, intitulado a “Retórica da
Intransigência: perversidade, futilidade, ameaça” (publicado no Brasil
pela Cia. das Lestras em 1992), demonstra detalhadamente os argumentos
esgrimidos ao longo de dois séculos contrários à introdução dos direitos
civis, políticos e sociais no mundo ocidental. São fortemente reativos
em sua ânsia por garantir privilégios.
No Brasil não tem sido
diferente, embora nossa direita, sobretudo no século XX, tenha se
caracterizado pela adesão a golpes “clássicos”, e também aos “brancos”
(mais sutis), respectivamente o golpismo civil/militar até 1964, e toda
forma de casuísmo anti-institucional: emenda da reeleição em plena regra
que a proibia, populismo cambial, “engavetadores gerais” da República
etc.
Mais ainda, no marcante momento da Assembleia Constituinte
de 1986/87, um sem-número de críticas ácidas, na perspectiva analisada
por Hirschman, foram desferidas contra a “Constituição Cidadã”. Analisei
detalhadamente tais críticas em meu livro “O Consenso Forjado – a
grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (Editora
Hucitec, 2005), e pude observar quão conservadora, em plena
redemocratização, fora a direita reunida em torno do “Centrão”.
Em outras palavras, essencialmente
falando, como sugerido por Norberto Bobbio, há diferenças cruciais
entre esquerda e direita, ideologias – ou doutrinas, termo mais correto,
pois indica um corpus conceitual e valorativo sistêmico – que continuam
vivas e antagônicas, cujos efeitos governamentais sob seu comando são
sentidos na vida dos cidadãos comuns, notadamente os pobres.
No
Brasil, embora as grandes coalizões partidárias, resultantes, por seu
turno, do financiamento privado legal e ilegal das campanhas e da lógica
privatista do sistema político brasileiro, embaralhem e turvem a
posição de ambas as ideologias, isso não significa que sua vigência seja
menor. Ao contrário.
As contradições nos Governos Lula e Dilma
expressam justamente os efeitos nefastos de um sistema político
fundamentalmente protetor das elites, cujas reformas sociais são sempre
incrementais e marginais, como tenho escrito em diversos artigos neste
Portal. Em outras palavras, uma verdadeira “inversão de prioridades”
(orçamento, crédito, infraestrutura, gastos sociais, dívida pública,
universalização de direitos, transparência e participação
popular/controle social etc), capaz de “radicalizar a democracia”, é
travada em razão da grande aliança conservadora: de classes, que se
expressa no sistema político.
A sensação de “geleia geral” do
sistema partidário, e mesmo a desilusão perante o Partido dos
Trabalhadores de amplas parcelas da sociedade brasileira não destituem o
legado – reconhecido sistematicamente nas urnas – de que a obra do
pensamento à esquerda está presente nos Governos Lula e Dilma. Apesar de
suas imensas contradições e da ausência de um Projeto de sociedade e
nação desses governos, os pressupostos de esquerda claramente estiveram e
estão presentes, a ponto de as candidaturas oposicionistas dos grandes
partidos patinarem em busca de um discurso capaz de se sobrepor aos
notáveis avanços sociais, políticos e institucionais vivenciados pela
sociedade brasileira.
A questão das concessões de serviços
públicos, as parcerias público/privado, a contratualização de setores da
gestão pública e o papel dos agentes privados nos sistemas universais
de direitos sociais não são suficientes para derrogar os avanços sociais
existentes justamente por ter havido pressupostos e objetivos de
esquerda. Trata-se, além do mais, de estratégias e táticas articuladas
ao momento histórico que, embora possam ser derrogadas, não denotam
intrinsecamente traição aos pressupostos de esquerda. Afinal, a
diminuição da desigualdade, a ampliação do gasto social e dos direitos
sociais universais, assim como da participação popular, vicejaram
vigorosamente, alterando em vários sentidos os legados perversos, e
convivem contraditoriamente com políticas conservadoras (forma e
conteúdo).
O grande desafio é ampliar e aprofundar a democracia
política e social no país, invertendo e revertendo prioridades, o que,
contudo, somente será realizado por uma política de esquerda, o que
implica o “fim do pacto conservador de classes”. Embora o momento
eleitoral não se preste a isso, uma vez que as regras estão dadas, as
jornadas de junho demonstraram que é possível “ir além” – forma e
conteúdo. Para tanto, novas e outras formas de fazer política precisam
ser inventadas e reformadas, cujo centro – à luz dos pressupostos de
esquerda – é a participação popular, o controle social e a
transparência, dado que capazes de inverter/reverter prioridades e que
representam justamente os anátemas da direita!
(*) O
cientista político Francisco Fonseca, doutor em História Social pela
Universidade de São Paulo (USP), é professor da Fundação Getúlio Vargas
de São Paulo (FGV-SP).
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-questao-ideologica-do-Brasil-contemporaneo/4/29804
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