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sábado, 22 de junho de 2019

O STF na encruzilhada

Uma aula magistral de Direito de fácil compreenção, ao mesmo tempo que dá uma cacetada, como nunca vi igual, no  #MinistroBarroso :

O STF na encruzilhada
Geraldo Prado, no Estadão

Geraldo Prado não é “apenas” professor de Direito Processual Penal na Universidade do Rio de Janeiro. Foi Promotor de Justiça e desembargador. Sabe bem do que está falando, em teoria e prática. O artigo que publica hoje no Estadão, com a simplicidade de um “precisa desenhar?”, desmancha completamente as teses pomposas dos que, no Judiciário, acham que podem “corrigir” a Constituição segundo suas “causas morais” (...)

Vale a pena a leitura, é simples e irrespondível.

O STF na encruzilhada
Geraldo Prado, no Estadão

As pessoas leigas em Direito muitas vezes somente percebem a importância do respeito escrupuloso às regras jurídicas quando vivenciam alguma experiência elas próprias.

O sentimento mais particular da relevância do cumprimento das leis não é suficiente para a construção de uma sociedade mais digna, fraterna e ética.

O salto para o plano do coletivo é fundamental porque é o passo à frente na criação e manutenção de uma tradição genuinamente democrática.

Cobrar a aplicação do Direito em relação ao desconhecido ou mesmo ao adversário como deveria ser aplicado a si mesmo é um dos fatores que caracterizam uma cultura democrática.

A exigência moral de que a lei se aplique a todos que estejam na mesma situação, de que as normas jurídicas devem ser escrupulosamente respeitadas, de que as competências para elaborar as leis, decidir sobre sua correta aplicação aos casos e governar a sociedade sejam igualmente tratadas como espaços políticos autônomos que devem conviver harmoniosamente, são condições básicas de que não devemos e podemos abrir mão.

O que a história nos ensina, dolorosamente, é que sempre que esta ética é desprezada, as leis ignoradas e a vontade dos poderosos é imposta como régua moral para corrigir a corrupção alheia, as sociedades entram no terreno do vale-tudo no qual prevalece a lei do mais forte.

E a história também ensina que não importa o quão poderosa seja a pessoa no momento em que maneja a interpretação das leis contra o texto legal, com fundamento em aparentes boas razões e também não interessa a que título exerce o poder, se deriva da riqueza ou da ocupação de um cargo público: o exercício do poder é algo transitório e amanhã será o poderoso de ontem a reclamar em sua defesa o direito que ele próprio pisoteou e ajudou a destruir.

No próximo dia 11 de agosto, o Mundo comemora os cem anos da Constituição alemã de Weimar. Para quem não sabe convém explicar que a Constituição de Weimar, promulgada após a derrota alemã na I Guerra Mundial, pretendia ser uma barreira contra os autoritarismos e uma alavanca capaz de impulsionar a proteção de direitos individuais e sociais (dos trabalhadores, previdenciários etc.).

O generoso projeto constitucional, no entanto, não foi capaz de impedir a ascensão do nazismo. Mesmo antes de 1933, quando Hitler chega ao poder, várias personagens importantes da vida alemã, não necessariamente autoritárias, já clamavam por aplicar a Constituição contra seu texto expresso, na defesa de virtudes cidadãs e patrióticas e no presumido interesse geral sobre o individual, usando como argumento a prevalência do fático sobre as regras jurídicas: a vida muda, o mundo se transforma e a velocidade dessa dinâmica social não é acompanhada pelas alterações da Constituição que obedecem a rituais lentos e exigências formais rigorosas, é o que dizem.

A este movimento de mudar a Constituição sem alterar seu texto e mesmo aplicá-la contra o que a própria Constituição determina deu-se o nome de “Mutação Constitucional”.

Pessoas poderosas convictas de suas virtudes corrigiam por conta própria os erros da Constituição. A mutação constitucional idealizada na Alemanha em 1906, em outras circunstâncias, pelo jurista Jellinek, para proteger direitos, converteu-se nas mãos dos virtuosos da década de 30 no instrumento que levou o mundo à beira do abismo.

Parece que não aprendemos a lição.

Ao menos não aqui no Brasil.

Em seu voto contra a aplicação literal e incontroversa da presunção de inocência conforme está definida na Constituição – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória – o ministro Luís Roberto Barroso invocou a “Mutação Constitucional” para justificar sua posição de não aguardar o trânsito em julgado de uma sentença condenatória para considerar alguém culpado.

O trânsito em julgado, dizem os que não apreciam a presunção de inocência, é algo demorado nos processos criminais, em especial quando se trata de processos criminais contra acusados ricos e poderosos.

Aguardar por ele, como preconiza o texto constitucional, é não estar atento aos novos tempos, que reclamam seja a opinião pública satisfeita em seu desejo de ver punidos os poderosos.

É necessário, portanto, deixar de aplicar a Constituição – em outras palavras, atuar na prática em sentido contrário ao texto da Constituição – para nos ajustarmos aos novos tempos.

A porta que se escancara quando o STF se transforma de guardião da Constituição em órgão que a corrige, por entender que a Constituição está errada, termina por permitir que passe todo tipo de gente que se entende virtuosa e, estando temporariamente no exercício do poder, resolva corrigir os rumos da história por suas próprias mãos.

É o que hoje a totalidade dos brasileiros constata ao ver desnudados pelas reportagens do The Intercept Brasil os métodos ilegais no âmbito da Lava Jato, métodos praticados por Sérgio Moro e alguns procuradores da República, que tímida, contraditória e prudentemente os reconhecem.

Não é verdadeira a alegação de que a tradição autoriza relações juridicamente promíscuas entre juiz e acusador. A regras legais não autorizam, antes proíbem, juízes de interferir na preparação da futura acusação, sugerir estratégias à acusação contra o réu, pasmem no curso do processo (!) e eleger critérios políticos para igualmente sugerir ao acusador quem, quando e em que medida este deve ou pode acusar alguém, quer esta pessoa mereça ou não ser melindrada.

Atitudes dessa ordem, flagrantemente ilegais, que violam a regra canônica da imparcialidade do julgador, da integridade do processo, da independência do Ministério Público e da impessoalidade na atuação dos seus membros, levam à nulidade de condenações que hajam sido proferidas.

Em 2004 o STF declarou inconstitucional a atuação de juiz em preparação da acusação por violar a imparcialidade do julgador (ADI 1.570 rel. Maurício Correa).

Narrativas estrategicamente definidas de antemão por acusadores e juízes podem ser mascaradas no processo por meio de um relato que aparentemente faça sentido. Como dizem os portugueses, “com a verdade me enganas”.

Estes comportamentos, no entanto, somente foram e são possíveis por que incentivados em um ambiente de “Mutação Constitucional” que no lugar de ampliar a proteção de direitos, como pretendia Jellinek, os suprime, como ocorreu na Alemanha de 1930.

O potencial autoritário de se transferir aos virtuosos a decisão de aplicar ou não as leis e a Constituição é imenso e a grande prejudicada, ao fim e ao cabo, é a sociedade.

Como disse no início. Poder não é algo que alguém tenha. As pessoas exercem o poder temporariamente, não se tornam donas dele para sempre. Daí a ironia de ver na audiência do Senado o ministro da Justiça que tanto defendeu o aproveitamento – e ao que tudo indica cogitou – de provas ilícitas manifestar-se agora enfaticamente contra elas. A próxima etapa será vê-lo defendendo a presunção de inocência. Convém anotar.

A Constituição não deve valer apenas enquanto é útil para nos defender. Ela deve valer o tempo todo, em relação a todas as pessoas.

Caberá ao STF assegurar isso. Se são verdadeiros os boatos de que há militares contrários à aplicação da Constituição, algo em que não acredito, apenas resta dizer que… já passamos dessa fase.

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