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terça-feira, 21 de maio de 2019

Neoliberalismo, riscos públicos

Crônica dos 10 anos da crise que mudou o mundo

O capitalismo sem quebra é como o cristianismo sem inferno. A destruição criativa que o verbo “quebrar” proporciona é uma das varinhas mágicas do sistema: os indivíduos quebram, as empresas quebram, até os países quebram, e dessa maneira se supõe − se supõe − que a economia se regenera, purifica-se, expia seus pecados e é capaz de seguir adiante. Essa regra de ouro vale para todos os agentes econômicos. Com uma sonora exceção: os grandes bancos, algo assim como o aparelho circulatório da economia global.
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“Nova York e o sistema financeiro: densidade, imensidão, complexidade”, escrevia este repórter com caligrafia apressada em um bloco de anotações recém-estreado um dia depois do 15/9, em pleno momento Lehman, diante da sede desse banco-pesadelo e ao lado de um fotógrafo de um tabloide que montou guarda durante dias para ver se algum banqueiro acabaria se jogando pela janela. Cada calamidade econômica deixa uma imagem de impacto: em 1929, sim, executivos se jogaram de seus escritórios para o vazio; nesta crise, por sua vez, os banqueiros das entidades quebradas embolsaram suculentas indenizações e o suicídio de maior impacto foi bem diferente: o de um aposentado grego exposto à miséria.

Juntamente com as imagens emblemáticas, cada uma das grandes crises provocou em sua época enormes mudanças: a de 1929 e a posterior guerra mundial deram origem ao keynesianismo, a uma forte regulação financeira e a 30 anos gloriosos de grande crescimento; a estagflação dos anos setenta acabou com Keynes e levou à contrarrevolução conservadora.

A Grande Recessão pode ser lida como um fracasso devastador do livre mercado, e mesmo assim quase nada mudou: Wall Street continua sendo “densidade, imensidão, complexidade” e os mesmos velhos vícios da economia permanecem vigentes. De qualquer forma, a crise foi um extraordinário catalisador para uma das grandes preocupações destes tempos, o auge irrefreável do populismo. Talvez a quebra, enfim, tenha chegado à aparentemente indestrutível democracia liberal, que durante tantas décadas protagonizou um suposto fim da história e pareceu inseparável do capitalismo.

Mas que os fatos falem por si mesmos, como diria o grande Alejandro Bolaños, um dos mais brilhantes cronistas desta crise: as horas posteriores à quebra do Lehman foram um autêntico caos no número 745 da Sétima Avenida, a um passo do Central Park, em plena Manhattan. “Uma confusão de limusines, unidades móveis e guardas de segurança giram ao redor de dezenas de executivos recém-despedidos”, pode ler-se no citado bloco do estupefato enviado especial. Não havia no mundo banqueiros mais arrogantes e desumanos que os do Lehman Brothers: daí a potência visual dessas imagens, essa fila de jovens financistas cabisbaixos levando seus pertences em caixas de papelão. Nesse 15/9 foi aberta a caixa de Pandora: “Estivemos extremamente perto de um colapso financeiro global”, escreveu Ben Bernanke, ex-presidente do FED e uma das personalidades fundamentais na gestão daquele caos. A resposta foi, basicamente, não voltar a deixar que ninguém mais quebrasse. “Se não houver ajuda, tudo pode ir para o inferno”, advertiu em 24 de setembro, apenas nove dias depois, um melancólico George W. Bush, suposto apóstolo do livre mercado e, na época, presidente dos Estados Unidos.

Assim, depois do Lehman, as finanças voltaram ao cristianismo sem inferno: a gigantesca seguradora American International Group (AIG) foi nacionalizada; Merrill Lynch, a corretora de Bolsa mais famosa dos EUA, evitou o colapso vendendo-se ao Bank of America (com muito dinheiro público, claro, no meio); Goldman Sachs e Morgan Stanley, os supostos senhores do universo, tornaram-se bancos regulados pelo FED para poder ter acesso às garantias públicas; o pânico atingiu o mercado de fundos monetários, com uma fuga de capitais que precipitou o congelamento do mercado interbancário internacional; o maior banco de poupança dos Estados Unidos, o Washington Mutual, e o quarto maior banco do país, o Wachovia, caíram em meio às chamas e foram adquiridos por uma miséria pelo Estado; o secretário do Tesouro, Hank Paulson, ficou − literalmente − de joelhos no Congresso para ativar um monumental plano de resgate no valor de 700 bilhões de dólares (2,8 trilhões de reais), que foi seguido por estímulos fiscais e fortes injeções de dinheiro público nos bancos em todo o mundo.

Ninguém tinha visto nada parecido. Aquele trimestre dos infernos, o último de 2008, esteve infestado de nacionalizações bancárias praticadas nos EUA por um Governo (o de Bush) infestado de políticos e ideólogos neoconservadores, inimigos acérrimos da regulação e da presença do setor público na economia. A mesma coisa foi feita pela Europa da alemã Angela Merkel, que depois de salvar os bancos e de um breve interlúdio de keynesianismo decretou cortes e austeridade para uma Europa na qual o euro esteve a ponto de explodir após uma gestão completamente medíocre da crise. Em alguns lugares, como na Espanha, a crise chegou com atraso: a bolha imobiliária estourou em câmera lenta, mas levou com ela metade do sistema financeiro, obrigou a pedir um resgate e deixou a economia espanhola em meio a uma crise oceânica − não só econômica − da qual só agora ergue a cabeça, e com muita dificuldade.

Os booms especulativos e as crises foram recorrentes ao longo da história. Em 1630, os comerciantes holandeses pressionaram os preços dos tulipas a tal ponto que um bulbo chegou a valer tanto quanto uma casa. Um século mais tarde, a nata da sociedade inglesa participou da bolha da Companhia dos Mares do Sul (Isaac Newton: “Posso calcular o movimento dos corpos celestes, mas não a loucura da gente”, afirmou depois de perder até a camisa). Em 1840, a febre pelas ferrovias tomou conta do imaginário público e terminou em um colapso fenomenal; em 1929, a bolha da Bolsa de Nova York e da terra acabou no crack de Wall Street e na Grande Depressão: às feridas econômicas se somou a ascensão dos extremismos políticos que levaram à Segunda Guerra Mundial − e atenção, porque alguns historiadores traçam exatamente esse paralelo com a crise atual, e não sem motivos. Mas o último episódio é simplesmente brutal: uma superbolha de quase 60 anos inflada à base de crédito, de dívida, na qual toda vez que o sistema financeiro se metia em problemas apareciam os bancos centrais com novas fórmulas para estimular a economia. Essa superbolha acabou escapando das mãos do sistema quando as inovações financeiras − subprime, derivados, CDO (obrigação de dívida colateralizada) e outros jargões impossíveis − se complicaram tanto que as autoridades já não pareciam capazes de calcular os riscos dos próprios bancos.

“Que o Senhor abençoe nossa maldita fraude”, dizia uma mensagem de correio eletrônico de um executivo do Standard & Poor’s revelada em uma investigação do Congresso dos EUA para descrever essas práticas. Porque a fraude foi colossal: (...)

A partir de setembro de 2008, tudo que podia acabar mal acabou mal porque, afinal,

“o sistema financeiro está infestado de dogmas falsos, mal-entendidos e ideias equivocadas: os mercados, deixados à sua própria sorte, não tendem ao equilíbrio, e sim a inflar bolhas”, afirma George Soros, uns dos maiores especuladores dos últimos séculos.

“A relação incestuosa entre as autoridades e seus bancos acabou explodindo”, aponta Soros no livro Financial Turmoil in Europe and the United States (“turbulência financeira na Europa e nos EUA”). O resultado foi a crise mais grave desde a Segunda Guerra Mundial.
(...)

Tim Geithner, ex-secretário do Tesouro dos EUA, aponta em seu resumo da Grande Recessão que a incerteza “é o coração das crises financeiras”, acrescentando: “E as crises não acabam sem que os Governos assumam os riscos que os investidores privados não querem, tirando a catástrofe de cima da mesa”. As crises financeiras são crises de confiança quando um país não pode pagar sua dívida ou um banco não pode devolver os depósitos. “Quando o medo se transforma em pânico, acabou-se”, afirma Geithner. “A única solução, nesses casos, é que o setor público assuma riscos.” E foi isso que fizeram os Governos (no G20) e os bancos centrais, principalmente nos EUA.

de Claudi Pérez, brasil.elpais.com
9 de Setembro de 2018

Matéria completa :

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/07/internacional/1536333092_303809.html

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