Páginas

segunda-feira, 27 de maio de 2019

A dívida da escravidão

Yolanda Monge, brasil.elpais.com
21 de Maio de 2019

Hoje está aposentado, tem 89 anos, mas em cada legislatura durante quase três décadas, o congressista de Michigan John Conyers propunha um projeto de lei para que os Estados Unidos reconhecessem “a crueldade, a brutalidade e a falta de humanidade” da escravidão, assim como “a resultante discriminação econômica e racial dos afro-americanos e o impacto em seus descendentes”. A proposta sequer chegou a ser debatida.

A ideia de realizar “reparações pela escravidão” esteve mais ou menos presente na sociedade norte-americana desde a Guerra Civil. Já em janeiro de 1865, meses antes do final da contenda, o general William Tecumseh Sherman ditou a famosa ordem de campanha conhecida como a lei “dos quarenta acres e uma mula”, em referência ao que prometia aos negros recém-libertos (o diretor de cinema Spike Lee batizou sua produtora em 40 Acres & Mule como homenagem). Desde então, as iniciativas de reparação se sucederam. Durante certas épocas hibernam, mas, sendo a escravidão o grande pecado fundacional dos Estados Unidos, o debate está aí e sempre volta a aparecer.

Agora, em 2019, enquanto cresce o número de democratas que se postulam a tirar o poder de Donald Trump em 2020, foram vários os candidatos que voltaram a mencionar o assunto. Da senadora californiana Kamala Harris à veterana Elizabeth Warren, passando pelo antigo prefeito de San Antonio, Julián Castro, todos – na atual campanha para obter a indicação do Partido Democrata nas eleições presidenciais do próximo ano – manifestaram seu apoio a alguma forma de reparação que alivie a indelével mancha americana. Em sua opinião, a escravidão não só causou danos e sofrimento aos escravos, como instaurou todo um sistema de corrupção que infectou, como uma gangrena, a sociedade inteira. É, defendem, uma dívida coletiva que sem dúvida deve ser paga.

O problema é que tal dívida cobre nada mais e nada menos do que 250 anos de história, porque o que ficou realmente provado é que a escravidão não acabou com Abraham Lincoln e a décima-terceira emenda da Constituição americana que abolia a escravidão. O antigo sistema de exploração e abuso foi sucedido por um século de leis que institucionalizaram a discriminação contra os negros, um modo de escravidão que sobreviveu até boa parte do século XX e que estava integrado no sistema econômico e amparado pelo Governo. Basta ler o revelador ensaio de Ta-Nehisi Coates ‘Um Argumento a Favor das Reparações’ (The Case for Reparations, no original em inglês), publicado na revista The Atlantic em 2014, para entender as razões pelas quais alguns dos mais destacados candidatos democratas lutam por esses desagravos. Coates define os anos das conhecidas como leis Jim Crow (legislação de segregação racial) como uma etapa de cleptocracia em que os negros eram roubados em seus pertences, no direito a votar, no direito a uma casa e até mesmo no direito à Justiça. Na opinião do ensaísta, o New Deal de Roosevelt foi projetado para proteger o estilo de vida sulista. Como diz em seu texto de mais de 16.000 palavras, foi tamanho o espólio de terras dos afro-americanos que esses terrenos hoje em dia são um clube de campo na Virginia e campos de petróleo no Mississipi, para citar alguns exemplos.

Entre 1930 e 1960, ocorreram em Chicago linchamentos de negros e incêndios para manter vizinhanças livres da presença dessa raça. Os mais de seis milhões de descendentes de escravos que protagonizaram a Grande Migração ao Norte fugindo da segregação e da violência do Sul encontraram na Filadélfia, Washington e Chicago leis que os impediam de alugar casas em igualdade de condições em relação aos seus compatriotas brancos, de modo que muitas vezes acabavam nas ruas, despejados, ao não conseguir pagar empréstimos abusivos, e fechados em guetos. É o que o autor Douglas Blackmon definiu como “escravidão com outro nome”. No livro que possui esse mesmo título (Slavery by Another Name, no original em inglês), o escritor coloca como, enquanto a Alemanha paga há 60 anos indenizações a vítimas do Holocausto, ‘Quando se menciona o assunto das reparações, são muitos os obstáculos encontrados para avançar em uma direção proveitosa. Quanto seria pago? (Os especialistas colocam o valor em trilhões). Para quem seria pago? (David Brooks, colunista do jornal The New York Times, se pergunta em relação a isso: Os milionários Oprah Winfrey e Lebron James seriam indenizados?). Mas por fim, o principal argumento dos que se opõem às reparações é que são violações ocorridas em um passado muito remoto, sobre as quais não existe um senso de responsabilidade coletiva.

Os democratas Elizabeth Warren, Kamala Harris, Julián Castro e Beto O’Rourke consideram que chegou o momento de começar uma conversa profunda em escala nacional. “Precisamos estudar os efeitos que tiveram décadas e décadas de discriminação e racismo institucional sobre muitas gerações, e determinar quais são as consequências e o que se pode fazer para intervir e corrigir o que aconteceu”, diz Harris. Na opinião de Beto, os Estados Unidos “nunca irão curar sua ferida” a menos que resolvam o pecado original da escravidão.

Há, entretanto, uma voz dissonante nas fileiras democratas. Bernie Sanders, senador de Vermont e um dos candidatos mais bem colocados nas pesquisas em relação à indicação de seu partido, não apoia as reparações porque considera que é praticamente impossível transformá-las em algo concreto. “Existem maneiras melhores de lidar com as crises do que entregar um cheque”, diz. Prefere apostar em políticas sociais, como a criação de emprego e dar facilidades para estudar. Barack Obama também se opôs às compensações em sua campanha à presidência porque poderiam se transformar, disse, em uma desculpa para dizer que a “dívida” com os negros está paga em vez de acabar com as discriminações atuais. Hillary Clinton também prefere falar de investimentos em vez de reparações.

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/20/actualidad/1558352137_695636.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário