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domingo, 18 de junho de 2017

Muito além do entretenimento

Na Folha de São Paulo 
por Mauricio Stycer

A eleição de Donald Trump, em novembro de 2016, ainda é um fenômeno em busca de boas explicações. Uma delas, divulgada recentemente, aponta para o papel da televisão.

Não está se falando da cobertura enviesada dos canais de notícias ou do espaço gigantesco que o candidato, com seu faro midiático, soube conquistar gratuitamente, alertam os pesquisadores James Shanahan, da Universidade de Indiana, e Michael Morgan, da Universidade de Massachusetts Amherst.

Em um estudo publicado na edição de abril do "Journal of Communication", um dos mais respeitados da área no meio universitário, os autores apresentam os resultados de uma pesquisa que mostra como a programação da TV cultiva o autoritarismo e como isso ajudou a eleger Trump.

Um resumo do trabalho foi publicado no site acadêmico The Conversation e reproduzido na revista "Time" desta semana.

Com base em uma pesquisa que ambos conduziram nos EUA e na Argentina nos anos 1990, Shanahan e Morgan partem do suposto de que quanto mais você assiste à televisão mais você tende a abraçar tendências e perspectivas autoritárias.

"Americanos e argentinos que assistem muita televisão têm um sentimento maior de medo, ansiedade e falta de confiança. Eles valorizam o conformismo, veem o 'outro' como ameaça e se sentem desconfortáveis com a diversidade."

Isso ocorre, afirmam, pelo fato de que a maior parte dos programas (séries, novelas etc.) ainda reforça estereótipos de gênero e raça, além de glorificar o uso da violência como solução de problemas.

Dois meses depois de Trump ter sido escolhido como o candidato republicano, no segundo semestre de 2016, os pesquisadores voltaram a investigar o assunto. A pesquisa, on-line, com mil adultos, buscou identificar os hábitos de consumo de televisão e as tendências autoritárias dos entrevistados.

Isso se mede com base em uma série de questões sobre o que, na opinião do entrevistado, é mais importante para uma criança. Independência ou respeito aos adultos? Curiosidade ou boas maneiras? Autoconfiança ou obediência? Quanto mais respostas à segunda opção em cada par, maiores as tendências autoritárias.

Como na pesquisa anterior, também desta vez foi possível notar uma associação entre consumo intenso de televisão e preferência por valores que sugerem tendência autoritária.

Mais importante ainda, escrevem, foi perceber que "ver muita TV e o autoritarismo, tomados juntos em sequência, tiveram uma relação significativa com a preferência por Trump". Esta relação, acrescentam, não foi afetada por gênero, idade, educação, ideologia política, raça e consumo de notícias.

Shanahan e Morgan concluem o artigo com duas afirmações importantes. "Nada disso significa que a televisão tenha desempenhado o papel decisivo no triunfo de Donald Trump. Mas Trump ofereceu uma 'persona' que se encaixou perfeitamente com a mentalidade autoritária alimentada pela televisão."

Acrescento duas observações. É curioso notar como muitas críticas ao "politicamente correto" no humor e na TV no Brasil partem de pessoas com um perfil politicamente mais conservador e, eventualmente, agressivo.

E, mais importante, não custa sempre lembrar que rebaixar a televisão a mero entretenimento, como muita gente faz, é fechar os olhos para os variados impactos que o meio pode provocar.

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